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ATIVIDADE FÍSICA

CrossFit e o risco de lesão: o que é verdade e o que não é nesse tipo de treinamento?

Especialistas ainda são cautelosos para associar o CrossFit a um risco maior de lesões. O que se vê nos consultórios é um número crescente de adeptos que precisam de ajuda após se machucarem. Na literatura científica existem poucos estudos sobre o tema, mas um deles - que entrevistou 132 praticantes - mostra que 73,5% sofreram algum tipo de lesão pela prática da modalidade

Valéria Mendes

Lesões de ombro e coluna são as mais comuns do CrossFit - Foto: JUSTIN SULLIVAN

Uma busca rápida na rede mundial de computadores nos mostra uma série de artigos que associam o CrossFit a um risco maior de lesões e até a uma doença grave chamada rabdomiólise, que, em linhas gerais, é um estado de saúde que afeta o funcionamento celular em razão da destruição das fibras musculares. Praticada nos Estados Unidos desde 1980, mas relativamente nova no Brasil, a modalidade ganha cada vez mais adeptos e as clínicas de reabilitação, mais pacientes. Fora do âmbito da especulação ou mera observação, não existem estudos consolidados na literatura científica que comparam, por exemplo, os riscos da prática do CrossFit com a musculação. Um dos poucos que já foram publicados mostra que entre 132 adeptos do esporte, 73,5% sofreram algum tipo de lesão. Desses, sete precisaram de algum tipo de cirurgia.
Intitulado The nature and prevalence of injury during CrossFit training (ou, em tradução livre, A predominância e os tipos de lesões durante treinos de CrossFit), a pesquisa foi publicada em novembro de 2013 no Journal of Strength and Conditioning Research Publish Ahead of Print e mostra que as lesões de ombro e coluna são as mais comuns entre os praticantes.

Os autores Paul Taro Hak, Emil Hodzovic e Ben Hickey foram os primeiros a relatar o tipo e a incidência de lesões em atletas de CrossFit. A idade média dos entrevistados variou entre 19 e 57 anos; 70,5% dos entrevistados eram homens; 29,5% mulheres e a média do ritmo de treinamento era de 5,3 horas por semana. A pesquisa mostra 3,1 lesões por mil horas treinadas, mas segundo o fisioterapeuta do Núcleo de Excelência em Fisioterapia (NEF), em Belo Horizonte, Ricardo Carneiro, a proporção encontrada é razoável se comparada a outros esportes. Além disso, os pesquisadores não encontraram nenhum caso de rabdomiólise e recomendaram maior investigação sobre o risco de lesão potencial do CrossFit.

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Clínicas cheias
Ricardo Carneiro diz que a lesão não é exclusividade do CrossFit e cita o pilates, a musculação e o futebol como modalidades em que os praticantes também se machucam com certa frequência. No entanto, o especialista tem recebido cada vez mais pacientes com lesão por CrossFit em sua clínica. Segundo ele, talvez por ser uma modalidade ainda nova que tem despertado muito interesse pelos resultados rápidos que apresenta.
Modalidade trabalha em altíssima intensidade e exige o máximo do corpo para alcançar uma resposta mais objetiva - Foto: AFP PHOTO / BERTRAND GUAY
O especialista explica que toda lesão tem dois fatores de risco: o intrínseco e o extrínseco. “O primeiro caso está no corpo da pessoa, é a força, a flexibilidade, a articulação mais resistente, mais elástica ou não. O segundo caso se refere à intensidade, ao tipo de exercício, ao tempo de recuperação do corpo entre uma pausa e outra, ao ambiente onde a modalidade é praticada, à temperatura... A lesão aparece da soma desses dois fatores. Ou seja, expor os fatores intrínsecos ao treinamento”.

Para ele, o CrossFit é uma prática bastante extenuante que pode levar à fadiga completa. “A carga de treinamento é muito excessiva e a pessoa não tem controle tão adequado dessa carga como na musculação. Quem pratica expõe o corpo a um risco maior de lesão”, salienta.

Professor do Departamento de Esportes da Faculdade de Educação Física da UFMG, Rafael Almeida cita outro dado que sugere um risco potencialmente maior dessa atividade física: “Quando implantado como forma de treinamento complementar em ambiente militar, o CrossFit demonstrou potencializar em aproximadamente 12% a incidência de lesões nos sujeitos. Esses resultados nos mostram que a prática em si é um fator que requer atenção de praticantes e treinadores”.

O educador físico esclarece que o CrossFit é um programa de treinamento com movimentos funcionais, constantemente variados e realizados em alta intensidade. “Possivelmente, o alto índice de lesões associadas à modalidade pela população em geral seja devido às altas cargas de treinamento a que os sujeitos se expõem. Muito provavelmente em função dos altos níveis de motivação observados em decorrência da prática em grupo”, avalia.

Ricardo Carneiro revela que a maioria dos pacientes que chegam lesionados ao NEF gosta muito da modalidade e faz de tudo para retornar ao treinamento. “Há os que voltam com alguma limitação de movimento e há aqueles que retomam a atividade com aprendizado sobre a execução dos exercícios e alterações na maneira de treinar. Em média, a recuperação é de dois meses”, afirma.

Sem consenso
Vice-presidente da Sociedade Mineira de Medicina do Exercício e do Esporte, o ortopedista Ronaldo Lopes Cançado afirma que a recomendação do CrossFit divide os profissionais. “Temos correntes distintas que são a favor ou contra, mas não existe consenso. O que ocorre, de fato, é que a modalidade trabalha em altíssima intensidade e exige o máximo do corpo para alcançar uma resposta mais objetiva”, diz. Para ele, o problema está em querer um resultado extremamente rápido sem respeitar os limites do corpo.
Para ser seguro, o treinamento precisa considerar as características individuais - Foto: AFP PHOTO / BERTRAND GUAY
O ortopedista ressalta que as pessoas não têm as mesmas características de fibra muscular e, por isso, o prazo para recuperação é específico. O especialista reforça a importância de dar tempo para o organismo descansar e não recomenda o treino diário.

Rabdomiólise
A rabdomiólise, segundo Ronaldo Lopes Cançado, é quando o corpo ultrapassa a capacidade de reparar a lesão. “A atividade física agride a musculatura que retira da alimentação a reserva para reparar essa agressão. É assim o ciclo normal. Quando começa a acontecer um desequilíbrio de controle e reparação, a lesão muscular está acima do que o organismo suporta, o que interfere no controle de temperatura de água corpórea e pode, inclusive, levar o indivíduo à morte”, explica. O ortopedista lembra que a estrutura física tem um limite e a atividade física deve estar dentro desse limite.

Rafael Almeida reforça que apenas casos isolados de rabdomiólise foram observados entre os praticantes de CrossFit, como também em outros esportes com altas cargas de treinamento. “Novamente o que pode acarretar tal patologia são as altas cargas mecânicas e fisiológicas impostas sobre os praticantes em qualquer modalidade ou esporte”, resume.

O fisioterapeuta Ricardo Carneiro diz que nenhuma caso da doença relacionado ao CrossFit foi relatado cientificamente. “Temos apenas casos relatados nos Estados Unidos, mas não é algo que eu já tenha presenciado na minha prática”, conta.
O CrossFit é um programa de treinamento com movimentos funcionais, constantemente variados e realizados em alta intensidade - Foto: JUSTIN SULLIVAN
Recado aos interessados
Os especialistas são categóricos quanto à necessidade de uma avaliação médica antes de se iniciar qualquer atividade física e, no caso do CrossFit, chamam atenção para a função dos treinadores. “É importante que o professor conheça o aluno internamente, suas limitações e potencialidades para tornar o programa de treinamento o mais específico possível para o objetivo do praticante”, afirma Rafael Almeida. Para o educador físico, entretanto, o CrossFit não considera a individualidade biológica de seus participantes, muitas vezes impondo uma carga de treinamento padronizada que pode ser subestimada para alguns e superestimada para outros.

Para quem nunca praticou atividade física de maneira sistemática o especialista recomenda uma atividade segura e eficiente. “No que se refere a eficiência em aumentar o desempenho e modelar os corpos de seus praticantes o CrossFit é indiscutível, mas no aspecto segurança pode deixar de ser uma atividade interessante dependendo das condições iniciais da pessoa”, diz.

Carneiro concorda: “o que temos que tentar fazer é moldar o treinamento às características individuais da pessoa e o professor precisa propor um treino que vá minimizar o risco de lesões”. Para ele, o que acontece em muitas academias e que agrava o cenário é que alguns treinadores são muito mais motivadores do que alguém com embasamento técnico e científico.

Já Ronaldo Lopes Cançado lembra que o programa de treinamento em grupo pode até ser o mesmo, mas a intensidade é individual. Por essa razão, sugere que cada praticante passe por uma avaliação para estipular a progressão da carga e a frequência. “Cada um tem uma resistência e um objetivo e nem todos vão conseguir chegar no mesmo nível”, afirma.

O ortopedista diz que a avaliação médica e física são imprescindíveis aos interessados em se matricular no CrossFit. “Não existe milagre, quem exige perto do limite do corpo tem chance muito maior de se machucar e não tem exceção nesse caso. Se a pessoa faz na intensidade maior do que a pessoa suporta ou ela desiste ou machuca”, afirma. O recado final do ortopedista é simples: “A prática de atividade física não garante saúde”.

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Eduardo Linhares, 31 anos, lesionou a lombar no CrossFit - Foto: Reprodução Instagram
O administrador Eduardo Linhares, 31 anos, sempre gostou e praticou esportes. As competições amadoras de tênis o acompanharam na infância e adolescência. Ele só parou no período da graduação. Após concluir o curso, adotou as trilhas de mountain bike aos finais de semana e o jovem chegou a competir também com a magrelinha. No entanto, quando a segunda-feira chegava, vinha um cansaço desmedido. Nessa época, Linhares treinava musculação para manter o ritmo durante a semana. “Eu passei a sentir muita fadiga após o ritmo pesado do final de semana e vi que precisava de uma preparação mais adequada, eu não fazia muito exercício aeróbico, por exemplo”, relata.

Foi então que, após uma conversa com a esposa que já era praticante de CrossFit, Eduardo decidiu se matricular. “Eu queria uma atividade que conciliasse o treinamento cardiovascular, muscular e de flexibilidade. O que aconteceu é que fui me encantando e hoje o meu ‘negócio’ é muito mais o CrossFit que a bike”, brinca. Desde 2012 é praticante e competidor amador, mas uma lesão na coluna o obrigou a fazer uma pausa. “Nunca me preocupei com a fisioterapia preventiva, usava a fisioterapia apenas quando precisava corrigir alguma coisa. Já quebrei clavícula, perna, lesionei o tendão. Não dava valor para a necessidade de evitar a lesão. Todo mundo quando é jovem se acha super-resistente. Não valorizava a questão postural e o valor da consciência corporal”, confessa.

Foi num dia de “treino em excesso, num exercício específico, que senti uma leve fisgada e, depois uma dor nas costas muito forte”, relata Eduardo que, no ano passado, foi diagnosticado com lesão na lombar.

Para ele, não foi o CrossFit que gerou a lesão. “Pode ter intensificado o esforço na coluna, mas a minha musculatura paravertebral que era fraca porque nunca fiz um trabalho preventivo”, acredita. As sessões de fisioterapia começaram em novembro e ele ficou três meses afastado da academia, mas manteve as pedaladas de final de semana. Em janeiro deste ano voltou ao treino de CrossFit com outra postura: “Em termos de movimento estou sem restrição, acho que estou bem reabilitado, estou conhecendo meu corpo melhor e me preocupo muito mais com a técnica”, observa.

Eduardo Linhares não gosta de associar a imagem do CrossFit ao risco de lesões. “Como qualquer outro esporte, o risco de lesão existe”, diz. Para ele, o ‘segredo’ pode estar na humildade. “Quando a gente começa num esporte a capacidade de evoluir em termos de carga é mais rápida que a curva de aprendizado da técnica. É preciso reconhecer isso”, pondera. Por outro lado, o administrador reconhece que o CrossFit estimula a competição. “A gente quer competir de igual para igual, fazer os mesmo movimentos daqueles que fazem o circuito com a gente, o importante é ter noção dos próprios limites”, aconselha.