Saúde

Tratar os filhos de forma diferente entre eles pode fazer mal a toda a famíia

O preterido tem mais chances de se tornar violento e de se desentender com os pais. Há risco de o escolhido derrapar nas relações sociais

Correio Braziliense

Helena se policia para respeitar a personalidade dos filhos Ana e Gabriel
Depois de nove anos como o único da casa, Gabriel pensou que a irmãzinha que estava para chegar se tornaria a preferida da casa. “Achei que teria preferência porque sempre escutava aquilo e via na televisão e nos desenhos”, conta o jovem de 24 anos. A história foi outra: ele e a irmã, Sophia, contam que nunca se sentiram preteridos pelos pais. A mãe, Hilda, 51, confirma: o sentimento de rejeição não faz parte do dia a dia da família Stein. Resultado de cuidados tomados até mesmo em pequenas atitudes: “Tirando datas especiais e aniversários, nunca dei presente para um sem dar para outro. Além disso, quando algum filho se destaca em alguma coisa, é importante elogiar, mas nunca em excesso, nem na frente do outro caso ele não tenha obtido o mesmo êxito”.


De acordo com um estudo da University of Illinois at Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, as regras adotadas por Hilda tornam a história da família uma exceção. Segundo os cientistas, é muito comum o sentimento de que há um filho favorito em casa, e os efeitos dessa sensação — que pode coincidir ou não com a realidade — podem marcar a pessoa que se sente menos privilegiada por toda a vida. A pesquisa indica, por exemplo, que o filho preterido tende a ter um comportamento mais agressivo e ser mais propenso ao uso de drogas e ao abuso de álcool.

Líder do estudo, Laurie Kramer defende que os tratamentos diferenciados são imprescindíveis, mas eles não podem ser mal interpretados pelos filhos. Cabe aos pais evitar esses equívocos. “Não é necessário comprar algo para um e para outro ao mesmo tempo. Muitas vezes, a conversa pode ser ‘Olha filho, eu trouxe esse pijama para a sua irmã porque o dela está rasgado. Mas notei que você está precisando de meias e vou comprá-las na semana que vem’”, ilustra.

A psicóloga reforça que é importante cumprir o trato e que observar a percepção dos pequenos é muito importante. Na chegada de um novo integrante na família, um momento delicado, o casal deve dividir os cuidados. Kramer sugere o pai dê atenção aos mais velhos enquanto a mãe cuida do bebê. “A ideia não é tirar o contato dele com o recém-nascido ou dela com os outros filhos, mas é uma bom jeito de ninguém se sentir negligenciado”, explica.

Hilda conta que, quando Sophia nasceu, perdia a paciência com Gabriel, que estava entrando na pré-adolescência. O marido a ajudou a perceber que ela precisava se controlar. “Eu estava em uma fase ruim, pós-parto, e não fui muito perceptiva, mas Rubens chamou a atenção e eu corrigi minhas ações”, lembra. Desde então, ela se preocupa em observar o comportamento de cada integrante da família. Para ela, errar é comum. O importante é perceber e querer melhorar. “Se algum deles está fazendo algo estranho, eu me pergunto ‘Por que estão agindo assim?’ Eu e meu marido sempre procuramos analisar nossas falhas em relação a eles.”

Personalidade
Laurie Kramer sugere ainda que, com a chegada de mais um filho, não sejam esquecidas as atividades que são preferidas dos que já nasceram, e que os pais detectem formas de incluir o recém-nascido no dia a dia dos mais velhos. Helena Soarez, 43 anos, adotou a tática. Desde que Ana nasceu, a servidora pública cuidou para não deixar Gabriel se sentir preterido. “Eu coloquei nele o mérito do nascimento dela. Falei que ela estava nascendo apenas porque era um excelente filho. Ele ficou tão convencido disso que contava isso para todo mundo”, ri.

No início, Helena tentou tratar os filhos exatamente igual, mas percebeu que isso acabava prejudicando a criação deles. Com o tempo, notou que a personalidade dos dois era diferente e que precisavam ser tratados de acordo com a individualidade. “Ela é bastante comunicativa e extrovertida, enquanto ele é bem mais discreto”, diferencia. A menina, hoje com 13 anos, chegou a reclamar algumas vezes que o irmão, com 17, era tratado com favoritismo, mas nunca conseguiu sustentar a afirmação com argumentos. “Acho que é comum que eles se sintam assim, mas eu sempre dou atenção quando falam. Sento, converso e procuro entender a causa desse sentimento”, diz a funcionária pública.

Segundo a psicóloga Karina Nonato, o saudável é que o tratamento seja igual, mas personalizado: “Igual no sentido de terem a mesma educação, os mesmos brinquedos, a mesma atenção; mas diferente de forma que possam desenvolver a própria identidade”, explica. “Sempre respeitando, claro, a opinião e os desejos distintos. Por exemplo, se um filho quer ter aulas de um esporte, o outro terá o direito de escolher uma aula também, preferencialmente diferente do irmão.”

Sem diálogo

A diferença de idade é um dos fatores que mais influenciam na forma como os filhos interpretam a relação dos pais com os irmãos, segundo a psicóloga Karina Nonato. Ela, inclusive, faz com que as percepções mudem ao longo do tempo. “Com a chegada de um bebê, o mais velho pode se sentir rejeitado. Contudo, quando ele chega a uma fase mais independente, pode ocorrer o oposto: o mais novo fica com inveja do irmão pela liberdade de sair sozinho com amigos, frequentar locais que ele ainda não pode”, ilustra.

Laurie Kramer complementa ressaltando a importância de levar a sério os sentimentos dos jovens, uma vez que a percepção deles é mais importante que as ações dos pais. “Eles podem colocar na cabeça um senso de justiça errado e não sentir abertura suficiente para dialogar sobre isso”, explica.

Segundo a psicóloga Karina Nonato, situações como uma gravidez indesejada e a convivência com filhos de outros relacionamento podem explicar a preferência. “Nesses casos, os pais devem procurar ajuda psicológica, principalmente se isso estiver interferindo muito nas relações familiares”, aconselha. “No caso explícito, o favorito pode ter a vida social prejudicada, pois poderá se tornar arrogante e se sentir superior aos demais.”

Helena garante que isso não acontece na casa dela. “Não tenho predileto. Quando tive meu primeiro filho, sentia um amor incondicional. É impressionante, porque quando minha filha mais nova nasceu, o amor não foi dividido entre os dois; a minha capacidade de amar aumentou e o que sinto por ambos é igual.”

Boa conversa
Feito pela Universidade de Illinois, o estudo envolveu 74 famílias de classe média com um filho que tinha entre 11 e 13 anos e ao menos um irmão de dois a quatro anos mais velho. Cada pessoa foi entrevistada individualmente sobre a interação familiar. Entre as conclusões a que os cientistas chegaram, está a constatação de que, ao conversar com os filhos sobre as razões do tratamento diferenciado, os pais evitam que surja entre os irmãos um sentimento de rejeição. Os pesquisadores também constataram que o filho que se sente menos privilegiado tende a ter um comportamento mais agressivo e ser mais propenso ao uso de drogas e ao abuso de álcool.
Quando criança, Daniela sofreu com as preferências da mãe e diz não repetir os erros com os filhos Theo (esquerda) e Dan

Mais cuidado, mamães
A sensação causada pela ideia de que há um favorito é potencializada quando o filho se sente preterido pela mãe, segundo o estudo da University of Illinois at Urbana-Champaign. “Ele costuma criar uma explicação própria e que pode não coincidir com a realidade. Isso pode levar à inveja e a atitudes inadequadas, principalmente em relação ao irmão considerado privilegiado”, diz.

Daniela Barbosa viveu isso. Entre os três irmãos, o mais velho é, sem dúvidas, o favorito da mãe, segundo a funcionária pública de 42 anos. “Nosso pai trata todos igualmente, mas ela sempre defende o mais velho.” Depois de descobrir o motivo, que prefere não dizer, Daniela não mudou de opinião, mas entende e aceita melhor o tratamento diferenciado.

“Deu uma aliviada. Mas fui descobrir já adulta. Então, isso não impediu que alterasse meu comportamento na adolescência.” Durante muito tempo, a mãe limitou-se a dizer que ela precisava menos da atenção. “Sempre fui a mais sapeca, muito rebelde. Nas brigas de irmão, eu sempre apanhava”, lembra.

A psicóloga Karina Nonato fala que um dos efeitos de o filho se sentir rejeitado é exatamente apresentar agressividade contra o irmão ou os objetos pessoais dele, como os brinquedos. “Outro comportamento é o isolamento, quando o ‘rejeitado’ fica mais calado e não interage com o ‘favorito’”, diz.

Para Daniela, essas atitudes fazem parte do passado. O irmão só é chamado de queridinho de brincadeira. A nova visão, a ajudou a desenvolver melhor a independência e vivera a maternidade sem culpas. Mãe de Dan, 5 anos, e Theo, 10, ela conta não existe um filho preferido, mas que é comum a tendência de “proteger mais o que tem que ser mais protegido” e que o tratamento precisa ser diferenciado por causa das personalidades distintas. Para não cometer gafes, recorre a livros e psicólogos.

Os sinais
Alguns comportamentos indicam quando um filho sente que é preterido. Confira os principais:

- Perguntar frequentemente o porquê de o outro ser o preferido
- Comportar-se de forma agressiva, principalmente com o irmão que considera ser o favorito
- Isolar-se
- Demonstrar tristeza perene
- Tentar imitar o irmão que ele acha ser o preferido
- Fazer coisas que sabe ser erradas para chamar a atenção dos pais

Fontes: Psicólogas Laurie Kramer e Karina Nonato



Ensine as diferenças
“Desde cedo, os pais precisam ensinar os filhos que cada um é diferente do outro. Há coisas que um tem e o outro não, há coisas que um pode fazer e o outro não, e isso não os torna melhores ou piores. Com a chegada de um novo bebê, os pais podem colocar o mais velho para auxiliar nos cuidados, fazendo ele ser participativo e não excluído. O ideal é que brinquedos e roupas sejam diferentes, tendo cada o filho o seu, mas todos aprendendo a repartir. Quando um pode ir a um local ou fazer algo que o outro não, é preciso mostrar que outras coisas o outro pode fazer. Isso é construir a identidade de cada um. Os filhos precisam aprender a ser diferentes, pois isso os ajudará a conviver em sociedade.” - Psicóloga Karina Nonato, mestra em neuropisicolinguística cognitiva comportamental