Um fato: muitas coisas mudaram entre as experiências vividas pelos jovens de 20 e poucos anos na década de 1970 e a realidade de um idoso aos 65 em 2014. Nesse período, turbulentos e polêmicos episódios alteraram permanentemente o que era esperado por aquele setentista como um “envelhecimento tradicional”. O divórcio, por exemplo, foi oficialmente instituído em 1977 no Brasil. Até meados dos anos de 1980 — quando surgiram os primeiros casos de Aids —, a camisinha era utilizada somente como método contraceptivo. E, apenas em 1998, foi aprovado o primeiro remédio oral para a disfunção erétil pela agência de vigilância sanitária dos Estados Unidos, a FDA.
A epidemia começa a envelhecer. Ao mesmo tempo em que as conquistas sociais fortaleceram o direito à sexualidade, idosos soropositivos expostos ao vírus, por eficácia do tratamento, têm sobrevida muito mais extensa do que no início dos contágios. “Mas, conscientizar essa faixa etária para o uso do preservativo é muito difícil”, aponta a coordenadora de DST/Aids do Pará e especialista na área, Deborah Maia Crespo. “Principalmente nessa faixa etária, é colocado todo um estigma de conduta e postura que favorece um cenário de rejeição familiar quando o idoso é vítima de exposição ao vírus”, completa. Ela conta que os relatos sempre trazem histórias de pessoas que contraíram a doença de um parceiro no qual confiavam e achavam que, por esse motivo, não precisavam se proteger.
Essa é a história de Olga*, moradora da Fale há alguns anos. Aos 55, ela não sabe dizer exatamente quando foi infectada, mas que o marido já manifestava sinais da doença antes que ela soubesse da própria soropositividade. O companheiro não resistiu aos danos causados pelo avanço da Aids. Hoje, Olga fala com desenvoltura sobre o preconceito e a dificuldade que enfrentou. Mas Crespo ressalta que esse desembaraço é pouco comum. Até mesmo o questionamento em consultório sobre a sexualidade do paciente idoso ainda é visto como tabu. “Imagine um profissional de saúde que solicita um exame de HIV. Vai ouvir: ‘você está me julgando como o quê?’ Quando, na verdade, não deixa de ser apenas uma doença sexualmente transmissível.”
Avanço silencioso
A ausência de discussão aberta e franca sobre a sexualidade durante o envelhecimento faz da Aids uma epidemia silenciosa na população acima dos 50 anos de idade em todo o mundo. A situação assume contornos de problema de saúde pública e, para os especialistas, é muito nítida a falta de políticas governamentais de prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis (DST) que abriguem as necessidades desse grupo. Essa é a opinião da psicóloga Marlene Zornitta, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ). Para a mestre em saúde pública, a questão é ainda mais grave entre a população do sexo masculino devido aos problemas de ereção que levam a uma dificuldade no manejo do preservativo e o consequente abandono do método. “As mulheres também estão na menopausa e não precisam de um método contraceptivo, como a camisinha é encarada por grande parte delas. Acabam deixando a proteção de lado.”
Nesse cenário de exposição e vulnerabilidade, incluem-se outras DST, mas a infecção pelo HIV pode ser mais bem mensurada por, entre outros fatores, ser de notificação obrigatória ao governo. De acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, entre o início de detecção da doença, na década de 1980, até 2000, foram diagnosticadas 17.120 pessoas acima de 50 anos com a infecção. Depois, os registros assustam. A soma de novos casos surgidos nos cinco anos posteriores ultrapassa as duas décadas epidemiológicas iniciais. Se em 2001 foram 2.741 novos soropositivos no Brasil com mais de 50 anos; em 2005, 4.356; e, três anos depois, 5.958 registros.
Os dados mostram a contínua ascensão dos números em 2010 (6.228), 2011 (6.449) e 2012 (6.533), mas não conseguem representar a dramática e alarmante realidade vista nos consultórios e nas entidades que trabalham diretamente com idosos soropositivos. Um dos infectologistas mais respeitados do país, Artur Timerman considera que o trabalho na clínica mostra que a epidemia de HIV não estacionou para nenhum grupo. Todos os dias, ele diz conviver com novos diagnósticos de jovens, mulheres e idosos. “Entre as pessoas acima de 65 anos, também percebemos um aumento.” Ele credita parte desse acréscimo à popularização das drogas voltadas para a disfunção erétil, capazes de manter o indivíduo sexualmente ativo por mais tempo.
“Um dos casos que recebi aqui foi de uma senhora de 89 anos que foi infectada aos 82 pelo marido. Ele colocou uma prótese e acabou extrapolando, teve Aids e transmitiu para ela”, relata o especialista. Algumas questões distinguem ainda mais o grupo. A fragilidade do sistema imunológico na terceira idade dificulta o diagnóstico de infecção por HIV, uma vez que, com o envelhecimento, algumas doenças se tornam comuns e os sintomas da Aids podem ser confundidos. Ao mesmo tempo, o idoso, a família dele e até mesmo os profissionais de saúde tendem a não pensar na infecção pelo vírus entre os mais velhos. Esse comportamento agrava a questão, pois o diagnóstico tardio de Aids desencadeia o aparecimento de infecções que comprometem a saúde mental, podendo causar, inclusive, a demência.
* Nome fictício a pedido da entrevistada
Sistema despreparado
À medida que os primeiros soropositivos envelhecem, especialistas em todo o mundo começam a questionar se o sistema de cuidados de saúde e políticas governamentais estão preparados para as novas e complexas necessidades. Países de alta renda, como o Canadá, têm 30% das pessoas vivendo com o HIV e 50 anos ou mais. Em São Francisco (EUA), mais da metade dos soropositivos vive a sexta década da vida. Em um estudo publicado neste mês na Current Opinion in HIV e AIDS, o neuropsicólogo Sean Rourke observou que o envelhecimento para as pessoas com vírus pode ser mais desafiador do que para a população em geral devido ao estigma relacionado à infecção: elas apresentam, por exemplo, mais risco de isolamento social. Segundo ele, os planos de pensões também não estão projetados para receber indivíduos nessa condição.