Saúde

Descoberta sobre células cardíacas adolescentes pode revolucionar os tratamentos de doenças congênitas

Cientistas dos EUA detectaram que, em ratos, as estruturas musculares do coração aumentam 40% na pré-adolescência

Isabela de Oliveira

Há 120 anos, a medicina acreditava que as células musculares do coração dos mamíferos paravam de se replicar logo após o nascimento, o que limita a capacidade de regeneração do órgão vital. Talvez não seja bem assim
É consenso entre os cientistas que as células musculares do coração (CMCs) dos mamíferos param de se replicar logo após o nascimento, o que limita a capacidade de regeneração do órgão vital. Resultados de um estudo publicado pela revista Cell destoam desse conceito adotado pelos médicos há 120 anos. A pesquisa, desenvolvida na Escola de Medicina da Emory University, nos Estados Unidos, mostrou que CMCs de ratos aumentam em 40% antes da adolescência. O mecanismo permite que o coração acompanhe o estirão de crescimento típico da puberdade. Os pesquisadores apostam que a descoberta abrirá caminho para outras investigações destinadas a aprimorar os tratamentos de seres humanos com doenças cardíacas, especialmente os bebês.


Crianças com cardiopatias congênitas são tratadas com medicamentos e abordagens aplicadas em adultos que desenvolveram doenças cardíacas ao longo da vida. A terapêutica, porém, nem sempre traz respostas satisfatórias aos bebês. A maior barreira é a perda da capacidade de replicação das CMCs, também chamadas de cardiomiócitos, no período perinatal — ciclo de desenvolvimento do feto que começa quando se completa a 22ª semana de gestação e termina sete dias após o nascimento.

“Por mais de 100 anos, acreditamos que essa perda se dava na primeira semana de nascimento dos ratos, o equivalente a mais ou menos o primeiro mês de vida dos seres humanos. Como essa janela de oportunidade se fecha muito rapidamente, pensávamos que a regeneração cardíaca em crianças com cardiopatias só poderia ser eficiente com o uso de células-tronco embrionárias ou adultas”, diz Ahsan Husain, coautor do estudo.

Agora, surgem evidências de que cardiomiócitos preexistentes, aqueles desenvolvidos no perinatal e que não perderam a capacidade de replicação, podem ajudar na regeneração cardíaca, ainda que o uso de células-tronco seja mais cotado. “Esse reparo é mais bem percebido nos corações feridos de anfíbios e alguns peixes. Mostramos, pela primeira vez , que a capacidade replicativa de cardiomiócitos em ratinhos não diminui até o início da pré-adolescência, o que corresponde de meses a até anos após o nascimento de bebês humanos”, compara o autor.

Influência hormonal
Entenda como os cientistas chegaram a essas conclusões. Clique para ampliar
O estudo, que contou com o reforço de especialistas do Instituto Victor Chang de Pesquisa em Cardiologia, na Austrália, acompanhou o dia a dia de camundongos recém-nascidos para observar se a quantidade de cardiomiócitos permanecia estática após o nascimento. Após três anos de observações, os cientistas concluíram que as células se replicam de maneira rápida e repentina. “Mostramos que o número de cardiomiócitos aumentou em 40% durante a pré-adolescência. O mecanismo não ocorre lentamente como imaginávamos e pode ser comparado a uma explosão discreta de células”, descreve Husain.

Aprofundando o estudo, os cientistas descobriram que os níveis do hormônio triiodotironina, o T3, produzido pela glândula tireoide, acompanham o ritmo de crescimento das CMCs. Segundo Husain, um ensaio clínico recente demonstrou os benefícios terapêuticos do T3 no pós-operatório de pessoas com cardiopatias congênitas submetidas a cirurgias. Portanto, de acordo com ele, já existem indícios consistentes de que danos no coração em mamíferos pré-adolescentes podem ser revertidos com modulação dos níveis de T3 e do fator de crescimento IGF, que também foi relacionado à regeneração.

Jorge Afiune, coordenador da cardiopediatria do Instituto de Cardiologia do Distrito Federal, diz que os resultados são surpreendentes e inéditos. Até então, sabia-se apenas que o coração se adapta às necessidades do indivíduo. Embora o organismo de ratos seja parecido com o de humanos, o médico alerta que mais testes são necessários até o desenvolvimento de uma intervenção clínica eficaz. “Hoje, os tratamentos para regenerar o coração de crianças são focados em melhorar a performance das células que sobraram. As evidências apresentadas por esse grupo indicam um outro caminho para pesquisas futuras, mas não podemos nos antecipar porque outros estudos que utilizaram a terapia hormonal para regenerar órgãos não tiveram resultados muito expressivos”, pondera o cardiologista.

Melhor contra as miocardites

“A regeneração pelo próprio organismo é uma alternativa ao transplante de órgãos e às terapias com células-tronco, as mais usadas e estudadas hoje para tratar esse tipo de problema. As crianças que nascem com doenças do coração ou desenvolvem miocardites virais poderiam ser as maiores beneficiadas do método. Hoje, as miocardites virais são a principal causa de problemas cardíacos em bebês: os vírus penetram nos músculos do coração e acabam os danificando. A solução costuma ser o transplante. Esse estudo é legal por proporcionar outras esperanças, mas precisamos ter cuidado ao lidar com mecanismos da natureza, como os hormônios. A manipulação hormonal para proliferar as células musculares do coração pode causar outros problemas, como o câncer, que é o crescimento descontrolado das células. Esse tipo de pesquisa exige muitos experimentos e tentativas e pode demorar mais de 15 anos para que nos forneçam resultados conclusivos”.
Rafael Munerato, cardiologista do laboratório Exame