Barbies humanas inspiram meninas no Brasil e no mundo; especialistas alertam para riscos

Polêmica envolve o incentivo a transtornos alimentares; garotas valorizam visual magérrimo e modificado por maquiagem para se assemelharem a bonecas

por Letícia Orlandi 10/04/2014 09:00

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Reprodução / GQ e Reprodução / Facebook
À esquerda, Valeriya Lukyanova, 'barbie humana' de origem russa que vive na Ucrânia; à direita, Narumi Kataiama, brasileira, moradora de Curitiba, que teria a menor cintura já registrada entre as bonecas humanas no mundo (foto: Reprodução / GQ e Reprodução / Facebook)
Mundialmente famosa, a modelo Valeriya Lukyanova, radicada na Ucrânia e mais conhecida como ‘Barbie Humana’, concedeu uma entrevista à edição deste mês da revista norte-americana GQ. Ela atribui a ‘queda’ no padrão de beleza à mistura de raças, revela sua admiração pela estética ‘nórdica’ e diz que preferiria ‘morrer torturada’ do que ter filhos ou manter um estilo de vida ‘família’. Ela reforça que é contra o feminismo e conta que frequentemente faz uma dieta baseada apenas em líquidos; entre outras declarações pouco ortodoxas. O repórter chega a dizer, em seu texto, que foi à Ucrânia esperando encontrar uma garota de cidade pequena que cresce obcecada por bonecas e encontrou, na verdade, uma ‘alienígena racista’.

 

Embora sem os traços preconceituosos revelados por Valeriya, o estilo de vida ‘Barbie Humana’ não está longe do Brasil. Eleita recentemente vice-campeã em um concurso que escolheria a melhor representante brasileira nesta categoria, a curitibana Narumi Kataiama impressiona. Ela mede 1m e 53cm e declara o peso de 33 quilos. A cintura, apontada como ‘a menor no mundo das bonecas humanas’ seria de 48 cm com corset. A meta é chegar a 45 cm.

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No perfil de Narumi, meninas apontam modelos de perfeição. Clique para ampliar (foto: Reprodução / Facebook)
Envolvida em polêmicas sobre o incentivo à magreza excessiva, Narumi afirma categoricamente que não é anoréxica, anêmica ou bulímica. “Nunca tive qualquer distúrbio alimentar”, garantiu ao Saúde Plena. Ela diz ainda que nunca quis emagrecer e nunca fez dieta. “Eu tenho 19 anos, tenho 1m53 e peso 33 quilos. É um peso assustador. Eu não conheço ninguém da minha idade que pesa isso. Meu IMC é 14. E o normal é 17 ou 18. Estou abaixo, sim, mas nunca tive problema com isso. É a minha genética, eu nasci magrinha, minha vida toda fui pequenininha. Eu já fui a diversos médicos, fiz uns exames muito loucos e nunca saiu nada”, defende-se a jovem.

Ela acrescenta que já tomou remédios para tentar engordar, que não funcionaram; e destaca que nunca receitou dieta para ninguém. Ela faz ainda uma defesa de seu direito de postar fotos que mostrem o corpo. “Eu não entendo a hipocrisia de vocês - se uma garota gordinha posta foto mostrando o corpo, dizendo que se aceita como é, todo mundo acha lindo; se uma garota magra posta foto, aí já vem: ‘não, porque você está promovendo a anorexia, as garotas vão te olhar e querer ser como você’”, ressalta. Ela critica também os blogs que ensinam técnicas para manter a anorexia e a bulimia e faz um pedido. “Não me use como uma inspiração negativa. Cada um tem sua beleza, cada corpo reage de forma diferente”, conclui Narumi Kataiama; assista ao vídeo postado por ela no Youtube:

 



Nas legendas e fotos da jovem brasileira em seus perfis oficiais, não há, de fato, nenhuma dica de emagrecimento ou receita milagrosa. Ela ensina técnicas de maquiagem e mostra que é adepta do uso de corsets para deixar a cintura ainda mais fina (leia mais sobre essa peça aqui). No entanto, é possível ver questionamentos, dúvidas e também muitos elogios de seus seguidores. Alguns desses comentários fazem alusão à perfeição e trazem referências a corpos extremamente magros (veja a galeria).
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Entre críticas e elogios, algumas fotos motivam seguidoras a dizerem que estão se 'sentindo gordas'. Clique para ampliar (foto: Reprodução / Facebook)

Ainda que, conscientemente, as meninas como Valeriya e Narumi não tenham a intenção de incentivar comportamentos negativos, existe um padrão estético vinculado ao visual 'boneca humana'. Enxergar neste tipo físico o ideal estético pode levar garotas a desenvolverem distúrbios alimentares e psicológicos? É o que perguntamos a dois especialistas: Bruno Sander, médico cirurgião, gastroenterologista e especialista em tratamentos para a obesidade e emagrecimento; e Sônia Eustáquia Fonseca, psicóloga clínica, especialista em sexualidade humana.

De acordo com o Bruno Sander, um biotipo pequeno – magro e baixo - e mesmo um IMC reduzido, como o de Narumi, não indicam necessariamente que há um transtorno alimentar. “Existem pessoas que, mesmo saudáveis e com alimentação correta, têm muita dificuldade para ganhar peso. Um tipo de corpo pequeno, isoladamente, não indica que há desnutrição ou qualquer outro problema de saúde. Não podemos tirar conclusões precipitadas”, pondera o médico, lembrando que, no caso de Narumi, a ascendência asiática é um fator de forte influência.

Uma criança que sempre foi considerada magra, em comparação com os coleguinhas de escola, por exemplo, pode manter essas características na adolescência e na fase adulta. “Há meninas que com 12, 13 anos têm aparência de uma criança de 8. Na adolescência, ela não vai desenvolver um corpo igual ao das colegas, ainda que assuma formas femininas. O biotipo é definido por fatores genéticos, ambientais – como a alimentação e a prática de exercícios - e também hormonais. Deve ser acompanhado e, em caso de dúvida sobre o desenvolvimento da criança, vale procurar um médico para avaliação. Entretanto, o fato de alguém ser ‘mignon’ não caracteriza problema”, explica.

Ele acrescenta que hoje, mesmo com a puberdade cada vez mais precoce, há crianças que desenvolvem-se mais lentamente. Isso pode, inclusive, estar relacionado a condições específicas de saúde. “A doença celíaca, por exemplo, enfermidade autoimune caracterizada pela intolerância à ingestão do glúten, pode levar à deficiência de alguns nutrientes e resultar no desenvolvimento de um corpo de menores proporções”, exemplifica Sander.

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Valeriya Lukyanova durante sua transformação: a única cirurgia que ela admite ter feito é a colocação de próteses de silicone (foto: Reprodução)
Segundo o especialista, portanto, o baixo peso e o desenvolvimento corporal são características individuais que não determinam, sozinhos, um diagnóstico de anorexia ou bulimia. “Uma pessoa pode ter um corpo muito diferente das formas dessas meninas-bonecas e ainda assim desenvolver um transtorno alimentar. E uma mulher com o corpo muito magro não necessariamente tem o problema”, esclarece.

Sander lembra, no entanto, que há riscos no ‘efeito espelho’. “Se uma pessoa que tem o corpo muito diferente do ‘mignon’ almejar essa aparência, muitas vezes a maneira que ela encontra para alcançá-la é parando de comer. Isso é um perigo. Com alimentação normal e saudável, uma pessoa com biotipo mais próximo da média brasileira, por exemplo, não consegue esse ‘resultado’, ainda que ela seja magra e tenha IMC perto de 20, por exemplo”, enumera o médico.

O próprio índice de massa corporal (IMC) é outro risco de interpretação apontado pelo cirurgião. “Alguns fisioculturistas, durante períodos de competição, chegam a alcançar um IMC de 8 ou 9. Nem por isso são anoréxicos. Por outro lado, há pessoas com massa muscular mais pesada que, mesmo com IMC acima de 25, não estão com sobrepeso. Portanto, o índice é, sim, uma referência para que alguns problemas possam ser identificados, mas não pode ser avaliado sozinho. IMC baixo não significa necessariamente desnutrição”, destaca.

Bruno Sander considera que os adolescentes, e particularmente as meninas, são o público mais afetado pelos padrões estéticos propagados em cada época. “Cada tribo estabelece mitos e padrões de beleza e de comportamento. As meninas geralmente querem ser magras e os meninos, mesmo sem estrutura corporal para isso, querem ser musculosos”, aponta.

Mas quando o desejo de ter um corpo bonito vira preocupação exagerada? “Quando afeta a saúde física e mental. Uma pessoa que se sente mal com o corpo e quer mudar não é doente. Mas uma pessoa que se arrisca, passa longos períodos em jejum, fica seis horas na academia e priva-se de alimentos importantes pode estar desenvolvendo uma patologia”, alerta.
O gastroenterologista ressalta que todo ser humano busca estar bem consigo mesmo. “Mas, se para alcançar essa condição, ele resolve emagrecer, deve fazer isso com orientação profissional. Sem cortar alimentos por conta própria, principalmente na adolescência, que é um período de grandes mudanças no corpo. Tudo que é em excesso, atrapalha”, define o especialista.

Sinais de problemas

De acordo com Bruno Sander, a família deve observar os sinais desse excesso. “Se o adolescente não quer mais se alimentar na presença de outros membros da família, se ele ou ela nunca aceitam os alimentos oferecidos, se de uma semana para outra as roupas não servem mais, os pais devem ficar muito atentos”, orienta. No caso da bulimia, a atenção deve ser principalmente na primeira hora que se segue ao momento da refeição. As idas frequentes aos banheiro nesse período podem ser sintomas importantes.

Além de problemas como pele e unhas quebradiças, queda de cabelo e dificuldades intelectuais, a deficiência nutricional é uma consequência grave dos transtornos alimentares e de imagem. “Sem os minerais e vitaminas necessários, podem surgir problemas na escola e falhas na concentração. Além disso, a pessoa repete constantemente que está gorda e insatisfeita, ainda que exiba um corpo bonito e saudável”, aponta Sander. Segundo o médico, caso mais de um sinal seja identificado no jovem, é necessário buscar orientação profissional.

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À dir, a modelo britânica Twiggy representou um novo padrão para o corpo feminino, antes dominado por formas voluptuosas como as de Marilyn Monroe (foto: Reprodução / Internet)
A primeira providência, neste caso, é ter certeza do diagnóstico, que será feito por meio de exames de sangue, avaliação física e pela conversa com o médico. Uma vez diagnosticado, o paciente deve ser encaminhado para uma equipe multidisciplinar, que inclua psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, nutricionistas e gastroenterologistas. “Só assim é possível reverter o processo que produz uma imagem distorcida de si mesmo”, define o especialista. “Peso saudável é aquele adequado à sua estrutura corporal, não pode ser definido apenas por um índice, um modelo ou por uma meta exagerada”, conclui Sander.

A psicóloga Sônia Eustáquia Fonseca, lembra, por sua vez, que apenas o fato de uma pessoa declarar que não faz dieta não garante que ela não tenha um distúrbio. “A anorexia nervosa tem como característica a negação do problema. Além da visão distorcida da imagem, a pessoa nunca admite que faz qualquer tipo de dieta. É um comportamento muito diferente de outros indivíduos que, apesar de desejarem perder uns quilinhos, conversam normalmente sobre a alimentação e assumem que estão fazendo regime”, afirma a especialista.

Fonseca acrescenta que a visão distorcida sobre o próprio corpo – ou seja, ver coisas que não existem – geralmente é acompanhada da paranoia em relação a ‘engordar’, da obsessão e da compulsão. O problema nunca vem sozinho. “O processo é tão severo que pode-se chegar ao risco de morte. E, neste ponto, pode haver necessidade de internação e cuidados psiquiátricos para contornar a crise. E só então iniciar o trabalho com a equipe multidisciplinar”, completa.

Nada de novo
A psicóloga lembra que a força dos modelos e padrões de beleza nem de longe é novidade. Para não ir muito longe no tempo: antes do sucesso da modelo britânica Twiggy, ícone de moda e estilo dos anos 60 e 70, os corpos femininos mais valorizados eram diferentes, ou seja, mais próximos das curvas de Marilyn Monroe. “Quando a Twiggy apareceu, a primeira impressão foi de que faltava ‘saúde’. Mesmo assim, com o tempo, ela ganhou seguidoras e se tornou um sucesso. Existe todo um contexto que define beleza e saúde em cada época e grupo. Em décadas mais recentes, as modelos, antes mais cheinhas, passaram, a ter uma função mais próxima do ‘cabide’, e um cabide deve ser magérrimo, comprido e fino”, aponta Sônia Fonseca.

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Valeria Lukyanova posa com a Barbie e, à dir.; com o norte-americano Justin Jedlica, que gastou mais de US$ 150 mil em cerca de 90 cirurgias plásticas para ficar parecido com o boneco Ken (foto: Reprodução)
Na fase da adolescência, é normal que os jovens queiram pertencer a outros grupos e apresentem uma identidade separada daquela que, até então, era fornecida pelo pai ou pela mãe. “Se mulheres magérrimas aparecem como bem sucedidas, famosas e poderosas, tornam-se exemplos. Muitos adolescente acham que precisam de fama e poder, seja inspirados pelo super-herói ou pela super-modelo”, explica. “Só que as pessoas que estimulam essas necessidades, por meio de veículos tão abrangentes quanto as redes sociais, por exemplo, não estão muito dispostas a assumir a responsabilidade pelo outro lado”, considera a psicóloga.

As consequências da identificação vão desde uma simples ‘fase’ até uma obsessão. “Se meu modelo for a Barbie, estarei sempre insatisfeita. Meninas que têm esse ideal podem desenvolver a anorexia nervosa, a neurose obsessiva e até mesmo se aproximarem da morte, da psicose. A morte na busca de uma beleza inventada”, alerta a especialista.

Fascínio e espelho
Sobre o encantamento pelo visual boneca, Sônia Fonseca explica que há sinais de um movimento regressivo. “Acredito que estamos lidando com alguém que não concluiu seu momento infantil”, destaca a psicóloga. “A fase adulta envolve questões relacionadas à individualidade, à sexualidade e ao sexo. Já as bonecas, padronizadas com rostos semelhantes, fazem parte do mundo infantil, em que a criança ainda está se definindo como indivíduo”, observa. Segundo Fonseca, indícios da ‘síndrome de Peter Pan’, ou seja, de quem não quer crescer, devem ser observados com atenção e tratados.

Por outro lado, o desejo humano de se inspirar no outro não tem nada de anormal. “Dos Beatles às Paquitas, procuramos outros modelos para abandonar o mundo das historinhas infantis e desenvolver uma identidade própria. Os pais devem ajudar os jovens a terem uma visão crítica sobre esse processo. Devem acompanhar, sem necessariamente proibir. Se houver essa visão, é bem provável que no fim da adolescência esse espelhamento já tenha sido superado. Um filme ou personagem que fascina o jovem pode ensiná-lo algumas coisas positivas e contribuir para a formação da personalidade. Mas os modelos não podem ser considerados prontos e perfeitos. Cabe à família mostrar que há limites”, orienta a psicóloga.

Segundo Sônia Fonseca, o entendimento não vem por meio do deboche ou da crítica negativa. “A velha dupla ‘eu sei o que é melhor para você’ e ‘eu estou estabelecendo regras porque eu te amo’ continua sendo uma ótima opção. Mas os pais têm demonstrado medo de se colocarem para os filhos, de afirmarem o que é certo e o que é errado. Se o período de identificação de um adolescente com determinado modelo coloca em risco sua saúde física e mental, há que se colocar um basta”, conclui a especialista.