Saúde

Psicóloga revela bastidores do clássico experimento sobre obediência publicado há 50 anos

Gina Perry contesta os resultados de Stanley Milgram que "provou" que as pessoas entram em uma espécie de transe e obedecem cegamente quando ficam de frente para uma figura com autoridade. No experimento, pessoas comuns decidiram administrar choques elétricos em um indivíduo inocente simplesmente porque um homem que se dizia cientista as convenceu que a punição era importante para uma pesquisa

Humberto Rezende

Em outubro de 1963, o psicólogo norte-americano Stanley Milgram publicou no Journal of Abnormal and Social Psychology um estudo sobre obediência que se tornou conhecido no mundo todo, tanto pelas críticas que recebeu quanto — e principalmente — pelo que aparentemente revelava a respeito do comportamento humano. Segundo o professor da Universidade de Yale, pessoas comuns tinham decidido administrar perigosos choques elétricos em um indivíduo inocente simplesmente porque um homem que se dizia cientista as havia convencido de que a punição era importante para a realização de um experimento.
Milgram e sua máquina de choque: controvérsia que dura cinco décadas
Os choques não tinham sido de verdade. Tanto o cientista como o alvo das falsas descargas elétricas eram atores contratados por Milgram para que ele pudesse verificar até que ponto as pessoas seguiriam os comandos (leia para saber mais). Mas, se a punição era falsa, uma realidade perturbadora havia sido revelada, de acordo com o psicólogo. O fato de 65% dos voluntários terem prosseguido até a voltagem mais alta, apesar dos protestos da “vítima”, mostrava que as pessoas entram em uma espécie de transe (que ele chamou de estado agêntico) quando ficam de frente para uma figura com autoridade, obedecendo cegamente aos seus comandos. Apesar de muitos colegas terem criticado o estudo, por enganar e submeter pessoas a um grande estresse, a descoberta foi recebida com entusiasmo por vários cientistas e pela mídia. Afinal, o trabalho parecia explicar por que tantos alemães tinham colaborado com o regime nazista, um tema muito debatido na época. Até hoje, o experimento da máquina de choque continua célebre. É invariavelmente estudado em cursos de psicologia do mundo todo, reproduzido por reality shows da tevê e apareceu até em um episódio do desenho animado Os Simpsons. Apesar de haver poucos pesquisadores que se disporiam a reproduzir o experimento atualmente, muitos são os que consideram os resultados de Milgram capazes de explicar alguns casos de abuso — o estudo voltou a ser lembrado, por exemplo, quando se tornou pública a tortura infligida por soldados americanos a prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib, em 2004. O problema é que toda essa repercussão não é baseada em evidências científicas confiáveis, afirma a psicóloga Gina Perry, autora de Behind the shock machine (Por trás da máquina de choque, ainda sem edição no Brasil), lançado recentemente nos Estados Unidos depois de ser editado originalmente na Austrália. No livro, a professora da Universidade de Melbourne mostra por que passou a questionar a validade dos dados colhidos por Milgram após vasculhar os arquivos do estudo e entrevistar diversas pessoas que fizeram o papel de “professor” no experimento e aplicaram os falsos choques no “aprendiz”. Segundo ela, as anotações do professor de Yale, morto em 1984, mostram que houve todo um trabalho para se chegar à encenação que garantiria um maior índice de obediência. Além disso, modelos posteriores obtiveram resultados bem mais modestos, com 60% dos indivíduos se recusando a continuar. Ao ouvir as gravações das sessões, Perry notou ainda que o ator responsável por interpretar o cientista nem sempre deixava os voluntários à vontade para decidir se continuavam ou não. “(Ele) pode ser ouvido atormentando e oprimindo alguns indivíduos mais de quatro vezes. No caso de uma mulher, ele insistiu mais de 20 vezes para que ela continuasse e, com outra participante, que desligou a máquina e se recusou a continuar, ele a religou e insistiu para que ela retomasse o procedimento”, conta ao Correio. “O experimento envolveu muito bullying e coerção”, acrescenta. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
"O experimento de Milgram não nos mostrou nada que já não soubéssemos por meio da história: algumas pessoas, em algumas circunstâncias, podem ser coagidas a fazer coisas que normalmente não fariam"
Que achados a fizeram questionar os resultados de Milgram? Várias coisas. Primeiro, eu descobri que Milgram conduziu 24 versões do experimento, cada uma com diferentes roteiros, atores e cenários. Em cerca de metade das variações, 60% dos participantes desobedeceram aos comandos. A maioria das pessoas, equivocadamente, acredita que a maior parte de nós iria até a máxima voltagem na máquina de choque. Isso se deve ao fato de a primeira variação testada por Milgram, na qual 65% de 40 indivíduos foram até a voltagem máxima, ter merecido uma enorme atenção da mídia. Ao longo dos anos, esse primeiro experimento confundiu-se com o resto dos testes, e a visão de que a pesquisa diz algo profundo sobre a natureza humana se espalhou. O que mais a senhora descobriu? Vi que muitos participantes expressaram a suspeita de que o experimento era uma armação. Milgram sempre tratou essas afirmações como o tipo de coisa que dizemos para nos sentirmos melhor a respeito do que fizemos. Porém, muitos voluntários escreveram ou telefonaram para Milgram mais tarde e descreveram de forma muito específica o que os havia feito desconfiar de que era uma encenação — os gritos do aprendiz soavam como se estivessem vindo de um alto-falante (de fato estavam); o pesquisador dava muito a impressão de que não havia nada com o quê se preocupar; algumas pessoas estranharam o fato de o pesquisador observá-los, e não o “aprendiz”, e por aí vai. Candid Camera era o programa de tevê mais popular naquela época, e as pessoas que se envolveram no experimento estavam acostumadas à ideia do engano e dos truques. A desconfiança pode realmente ter influenciado os resultados? Eu me deparei com análises estatísticas feitas por Milgram, mas não publicadas, que comparavam a quantidade de choques dados com a crença das pessoas na veracidade deles. Segundo essa análise, os indivíduos que acreditavam na veracidade da punição deram níveis mais baixos de choque e desistiram do experimento mais cedo. Outro ponto que a senhora ressalta no livro é o papel do ator que interpretava o cientista. O “pesquisador”, longe de ser altamente controlado, variou muito na forma como foi administrado. A maneira como foi descrito é enganosa. Por exemplo, (Jack) Williams, que fazia o papel do experimentador, supostamente teria dado quatro estímulos verbais para encorajar as pessoas a continuar com os choques. Foi dito que, se os participantes continuassem resistindo após o quarto estímulo, o experimento era encerrado. No entanto, nas fitas de áudio (Milgram gravou as sessões), Williams pode ser ouvido atormentando e oprimindo alguns indivíduos mais de quatro vezes. No caso de uma mulher, ele insistiu mais de 20 vezes para que ela continuasse e, com outra participante, que desligou a máquina, ele a religou e insistiu para que ela retomasse o procedimento. O experimento envolveu muito bullying e coerção. Parece que eles tinham a intenção de obter uma taxa alta de “obediência”. O que o trabalho de Milgram pode nos dizer de fato? O experimento nos mostra que podemos sofrer bullying e ser coagidos por pessoas com autoridade, principalmente quando se trata de alguém em quem confiamos. A lição mais importante é que nós deveríamos ser mais críticos com relação às histórias que nos contam sobre ciência. De maneira geral, qual foi o efeito sobre os participantes? Alguns não foram afetados, mas outros, com quem conversei, ainda estavam, 50 anos depois, chateados e consternados com a pesquisa. Milgram não contou que se tratava de uma encenação para muitos participantes. Eles eram enviados para casa sem uma explicação, e ele só fez isso por carta um ano depois de os testes terem começado. Para a maior parte dos indivíduos foi muito estressante e perturbador. Teve um impacto duradouro em vários participantes. Por que Milgram fez o que fez e dessa forma? Devido à ambição apenas ou sua forma de agir tinha relação com uma certa visão de ciência na época? O experimento estava de acordo com a tradição da psicologia social que usava o engano para que o comportamento “natural” das pessoas pudesse ser estudado sem que elas estivessem a par disso. Milgram estava interessado em entrar no debate sobre o que havia motivado pessoas comuns a participarem do Holocausto. Ele era certamente ambicioso e havia sido treinado a procurar por resultados surpreendentes e cotraintuitivos, e esse foco prejudicou a abordagem em relação ao seu trabalho. Hoje, comitês de ética não aprovariam esse tipo de experimento. Mas ainda há problemas que precisam ser discutidos em estudos de psicologia? É importante pensar sobre o efeito das pesquisas nos participantes e se perguntar sempre por que um estudo precisa ser feito e que alternativas existem para realizá-lo. Eu acredito firmemente que especialistas e pesquisadores têm uma obrigação ética com relação aos voluntários que vai muito além da porta do laboratório. O experimento de Milgram não nos mostrou nada que já não soubéssemos por meio da história: algumas pessoas, em algumas circunstâncias, podem ser coagidas a fazer coisas que normalmente não fariam. Qual é a maior lição que seu livro traz sobre os riscos da ciência? Parte do poder duradouro do experimento de Milgram vem da suposta dramática transformação de pessoas comuns em torturadores. Mas essa impressão vem da forma como o experimento foi apresentado e da história que nos contaram. Nós precisamos lembrar que cientistas são contadores de histórias e que precisamos ser mais críticos sobre as histórias que chegam até nós. O que a senhora pensa hoje sobre a tese de Milgram a respeito do estado agêntico? Milgram desenvolveu essa teoria para explicar seus resultados. Ele disse que nós entramos em um estado agêntico quando nos deparamos com os comandos de uma autoridade. Nesse estado, semelhante ao de zumbis, nós deixaríamos de lado nossas intenções e obedeceríamos a ordens como escravos, mesmo que elas entrassem em conflito com nossas crenças. Mas não foi isso que Milgram observou em seu laboratório. As pessoas imploraram ao “pesquisador” (para que o experimento não continuasse), ofereceram-se para trocar de lugar com o “aprendiz”, tentaram burlar o teste, ficaram estressados e tentaram fazer com que o “pesquisador” se atentasse (à gravidade da situação). O comportamento delas não foi robótico.
O direito dos participantes “Não acredito que o estudo de Stanley Milgram fosse aprovado hoje por qualquer comitê de ética do Brasil ou do mundo. A segurança e o bem-estar dos participantes devem ser preocupações centrais das pesquisas com seres humanos atualmente. Mesmo que o conhecimento a ser adquirido com a investigação seja de extrema importância, isso não pode estar acima dos direitos e interesses dos voluntários. O trabalho de investigação realizado por Gina Perry aponta que houve tanto problemas metodológicos, com a má interpretação dos resultados, quanto falhas na forma de lidar com os participantes. O fato de, 50 anos depois, ainda haver pessoas sofrendo por terem tomado parte do estudo é grave. Livros como esse são muito importantes para refletirmos sobre os limites e as responsabilidades da ciência.” Marília Jácome, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa do UniCeub e doutora pelo Programa de Bioética da Universidade de Brasília. Para saber mais... Pegadinha no laboratório O experimento de Stanley Milgram era como uma pegadinha de televisão. Na primeira versão desenvolvida pelo psicólogo, a que se tornou mais famosa, o voluntário se inscrevia para o que acreditava ser um estudo sobre memória e aprendizado e se dirigia a um laboratório de Yale no dia e na hora marcados. Lá, encontrava dois homens, Jack Williams e James Justin McDonough, atores que se apresentavam, respectivamente, como um cientista e outro cidadão comum que também tinha se inscrito para participar da pesquisa. O falso cientista dizia que o objetivo era descobrir se punições podiam melhorar a capacidade de aprendizado de alguém. Para isso, uma pessoa seria o “professor”, enquanto a outra, o “aprendiz”. Um sorteio armado colocava McDonough no segundo papel. Ele era, então, amarrado a uma cadeira e tinha falsos eletrodos ligados ao seu corpo. O cientista levava o participante a uma outra sala e lhe apresentava uma máquina que, segundo ele, capaz de dar choques cada vez mais intensos no homem que ficara na outra sala. Toda vez que o “aprendiz” desse uma resposta errada sobre uma lista de palavras que precisava memorizar, o “professor” deveria aplicar uma voltagem mais potente. O equipamento indicava que as punições iam de “choque leve” até perigo: choque severo”, sendo que os dois últimos botões tinham apenas a indicação “XXX”. Ao longo do teste, o “aprendiz” começava a protestar e, depois, a pedir, aos berros, para que o experimento fosse encerrado. Toda a gritaria, havia sido previamente gravada e saía de alto-falantes que estavam na sala onde o aprendiz havia sido supostamente amarrado. De acordo com Milgram, o ator que interpretava o pesquisador incentivava a pessoa a continuar com frases predeterminadas, como “O experimento requer que você prossiga”, e, só depois que o participante ia até o fim, aplicando o choque mais potente ou se recusando a continuar, era revelado que as cargas elétricas eram de mentira. Segundo a apuração de Gina Perry, porém, a ação do “pesquisador” foi, em vários casos, bem mais incisiva que o descrito. E muitos voluntários foram para casa sem saber que os choques aplicados eram falsos.