Saúde

Processo das lembranças irreais é igual à evocação dos eventos verdadeiros

Grupo de pesquisadores consegue criar falsas recordações em ratos por meio de estimulação cerebral

Durante mais de uma década, Jean Piaget acreditou que havia sido vítima de tentativa de rapto aos 2 anos. A lembrança do quase sequestro era, aliás, sua memória mais antiga. Ele se recordava de detalhes, como estar sentado na cadeirinha, vendo a babá defendê-lo do bandido, enquanto este arranhava o rosto da heroína. Em seguida, um policial de capa e cassetete conseguiu evitar o crime. O fato era contado frequentemente pela babá, por familiares e por outras pessoas que tinham ouvido falar no caso. Contudo, isso jamais aconteceu. Quando o psicólogo infantil francês estava na adolescência, a empregada escreveu uma carta, confessando que havia inventado tudo. “Escutei a história na infância, a projetei para o passado em forma de memória visual, que era a memória de uma memória, mas falsa”, contou Piaget mais tarde.


Recordar algo nunca ocorrido é comum e pode acontecer com pessoas de qualquer idade. Muitos indivíduos nem sequer percebem que determinadas lembranças foram criadas, pois as cenas e até os sons evocados pelo cérebro surgem com a mesma nitidez e grau de detalhamento das memórias reais. Agora, pesquisadores do Centro de Circuitos Genéticos Neurais Riken-MIT, uma parceria entre cientistas japoneses e americanos, demonstraram como o processo de implantar falsas recordações se dá no nível neuronal. Para isso, eles utilizaram uma tecnologia de ponta, a optogenética, que usa pulsos de luz para identificar e estimular redes dentro do cérebro. O resultado do estudo foi publicado na edição desta semana da revista Science.

De acordo com os neurocientistas, as memórias são armazenadas em sistemas celulares comparados a pecinhas de Lego. Quando a pessoa se recorda de uma sequência de eventos, o cérebro reconstrói o passado juntando os “tijolos” de dados, mas somente o ato de acessar as lembranças já modifica e distorce a realidade. Juntando uma fonte externa ao processo — no caso de Piaget, foi a babá —, a probabilidade de haver confusões é ainda maior. “A memória é algo extremamente não confiável”, comenta Susumu Tonegawa, diretor do Centro de Circuitos Genéticos Neurais Riken-MIT e professor do Instituto de Ciências Cerebrais Riken, no Japão.