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Desde o século 18, mineração e geografia de Minas Gerais estão presentes na literatura

Área rural foi coberta de resíduos, destruindo casas, plantações e soterrando centenas de pessoas - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A PressDesde o século 18, a poesia criada em Minas Gerais reflete uma particular relação com sua geografia e, naturalmente, com suas montanhas. Fonte de ouro, diamante e outras tantas matérias-primas, o “mar de montanhas” tem sido percorrido assim que, de terras estrangeiras, a sede do lucro aportou por aqui. Às custas de ferro, fogo, grilhões, muito sangue e incontáveis vidas, depois de séculos, Minas Gerais ainda é a maior mina do Brasil, responsável por mais de 40% da produção mineral do país.

Evidente no próprio nome, a história do estado é indissociável da atividade mineradora. A extração e a exploração dessas riquezas e a constante transformação da paisagem estão registradas em documentos, livros de história, relatórios contábeis e, obviamente, na literatura.

Os nascidos nas Minas ou nas Gerais, sejam poetas, cronistas ou escritores dos mais diversos gêneros, épocas e estilos, todos (ou quase) expressaram a relação intrínseca deste lugar, de seu lugar de fala, com as montanhas e a mineração. O poeta inconfidente Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), embora de maneira metafórica, escreveu versos que muito bem poderiam servir de epitáfio coletivo aos mortos na recente tragédia de Brumadinho: “Tudo cheio de horror se manifesta,/ Rio, tronco, montanha e penedos;/ Que de amor nos suavíssimos enredos,/ Foi cena alegre, e urna é já funesta”.

As serras e sertões de Minas Gerais são cenários de inúmeras histórias, foram contadas em verso e prosa. No entanto, nada se compara à presença do minério, da mineração, do ferro e de suas feridas como foi registrado na obra de Carlos Drummond de Andrade.

Sua visão de mundo – do existencial ao político – carrega esses elementos históricos, geográficos, materiais e sociais constituídos em Itabira. Em toda a produção do escritor, a imagem da cidade natal retorna sob a forma de sonho ou trauma, como a fotografia na parede, que tanto lhe doía.

A poesia de Drummond está impregnada de pó de minério. Para ele, é impossível dissociar o peso do ferro do “ser mineiro”.
Ou, como diz o professor José Miguel Wisnik, “a obra de Carlos Drummond de Andrade é inseparável da mineração de ferro”. Essa condição é tratada ora com carinho ora com amargor, mas sempre ciente da impossibilidade de extraí-la de si. “Alguns anos vivi em Itabira./ Principalmente nasci em Itabira./ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro”, escreve em Confidência do itabirano, poema de Sentimento do mundo (1940), seu terceiro livro.

Não é por menos que o ferro e o minério acompanharam a vida e a obra do “Poeta maior”. Itabira foi o berço da Vale do Rio Doce, companhia fundada por Getúlio Vargas em 1942 para suprir a demanda por ferro e aço durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Drummond deixou Itabira em 1920, mudando-se depois para a jovem Belo Horizonte, onde concluiu o curso de farmácia, mas, sobretudo, fez amizades decisivas e abriu os olhos para o modernismo literário e descobriu um mundo além do vale e das montanhas.

Esse traço particular – por vezes até provinciano – não impediu que a sensibilidade e a criação artística do escritor alcançassem dimensões universais. Pode-se afirmar que a máxima do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) – “se queres ser universal, comece por pintar a tua aldeia” – foi seguida à risca pelo poeta mineiro. Assim, mesmo que não tenha regressado à cidade natal depois de 1948, Itabira nunca o abandonou.

A relação entre a obra drummondiana e sua cidade natal tem sido analisada por muitos estudiosos, com destaque para a questão da mineração.
Em poemas, crônicas e artigos de jornal, o escritor expôs sua indignação sobre a destruição da paisagem de sua infância. Ao mesmo tempo, seus versos aludem a um passado inalcançável e perdido.

O Pico do Cauê, “a serra que não passa”, é uma fotografia impressa na memória do poeta. Serve-lhe como retrato da destruição e sina das Minas Gerais, mas também como metáfora do vazio trágico da existência humana. “Foge minha serra, vai/ deixando no meu corpo e na paisagem/ mísero pó de ferro, e este não passa”, escreve em A montanha pulverizada, de 1973.

Em No vasto mundo de Drummond (Editora UFMG, 2005), Letícia Malard, professora emérita da Faculdade de Letras da UFMG, destaca o conceito, elaborado pelo crítico Luiz Costa Lima, de “princípio-corrosão”, detalhando que o interpreta como “a corrosão no sentido literal, socioeconômico – a serra sendo corroída pela retirada do minério – e uma corrosão metafórica – a alma corroída do itabirano, uma vez que procura a ‘sua’ serra, a qual lhe parecia eterna, e não mais a encontra”.

No ano passado, José Miguel Wisnik publicou Maquinação do mundo – Drummond e a mineração (Companhia das Letras). A obra é o mais detalhado estudo a respeito da relação da obra de Drummond e a atividade extrativista. O autor faz o percurso poético do itabirano, apontando como a lírica drummondiana está soterrada de referências às minas do estado. Mostra ainda a campanha aberta que o escritor mineiro manteve, na década de 1950, como cronista, contra os malefícios causados pela então Companhia Vale do Rio Doce e as consequências da exploração desenfreada.

A professora Letícia Malard, mais uma vez, analisa com precisão o poema Lira itabirana, que tão bem expõe que as feridas da mineração, ainda hoje, seguem abertas como as montanhas de Minas Gerais: “Aí, a reiteração de sons e de vocábulos, a expressão de dor ‘ai’ – sob a forma de interjeição, substantivo e sílabas – e a força das interrogações traduzem no verso curto o sofrimento daqueles que presenciam a ‘venda’ de sua terra querida. Criticando a exploração e exportação do minério de ferro, dirá que o rio é doce, mas a Vale (do Rio Doce) é amarga, havendo muitos ais nas estatais e multinacionais”.



A MONTANHA PULVERIZADA
(De Menino antigo – Boitempo 2, 1973)

Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.

Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é sua vista e contemplá-la.

De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.

Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
— o trem maior do mundo, tomem nota —
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.


LIRA ITABIRANA
(Inédito em livro, publicado no jornal 
O Cometa Itabirano, em 1983)

I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?



ITABIRA
(De Alguma poesia, 1930)

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma 
na derrota incomparável.




O MAIOR TREM DO MUNDO
(Inédito em livro, publicado no jornal O Cometa Itabirano, em 1984)

O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão

O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano

Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.




CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO
(De Sentimento do mundo, 1940)

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
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