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A noite da espera

Milton Hatoum faz palestra hoje no Fórum das Letras sobre romance mais recente

Os brasileiros não devem sentir medo, até porque o medo paralisa as pessoas.” É assim, com seu jeito contundente e, ao mesmo tempo, sereno que o escritor Milton Hatoum avalia o país pós-eleições.

Apesar de perceber no ar certo temor de parte da população após a vitória de Jair Bolsonaro (PSL), o autor do romance Dois irmãos, adaptado para o formato de minissérie pela Globo, acredita que o sentimento dos cidadãos brasileiros neste momento deve ser precisamente o oposto. “Esse receio é o que eles querem. Subjugar a uma posição pela brutalidade e pelo medo. Assim é o projeto fascista. Esse é o momento de falar as coisas, de se posicionar e de ir para as ruas. Tanto que já têm ocorrido algumas manifestações, protestos.”

Hatoum participa hoje à noite na Casa da Ópera, em Ouro Preto, da mesa “Identidade e território literário”, que terá mediação da jornalista portuguesa Isabel Lucas. O debate faz parte do Fórum das Letras, aberto ontem e que segue até domingo na cidade histórica, tendo como tema “Emergências: literaturas e outras narrativas”.

Além de falar sobre literatura de modo geral, o autor abordará seu processo criativo, a partir da produção de seu mais recente livro, A noite da espera (Companhia das Letras), primeiro volume da trilogia O lugar sombrio.
Os dois próximos volumes estão previstos para 2019 e 2020. A narrativa se centra num drama familiar que tem como pano de fundo a ditadura militar brasileira. A noite da espera trata das experiências de um jovem que se muda de São Paulo para Brasília em 1960. O amadurecimento de Martim se dá em paralelo à efervescência da capital impulsionada pelo projeto desenvolvimentista.

“Olha para você ver a coincidência. Comecei a escrever essa trilogia em 2007. O momento do país era outro. O lugar mais sombrio (nome da trilogia) está aí.
O lugar e o tempo. O livro fala muito sobre as idas e vindas do tempo. Essa é uma questão central da literatura. Temos conflitos pessoais num tempo histórico”, observa.

Nascido no Amazonas, Hatoum morou em Brasília durante a adolescência – período que coincide com o retratado no livro. “Sem minha experiência em Brasília, não poderia ter escrito esse romance. Mas não quis retratar a minha vida. O protagonista e os demais personagens foram construídos e elaborados. Não é um romance político.
Ele tem uma coisa que o Mário de Andrade falava, que é a vivência dramática; uma vivência não só do contexto, mas dos impasses do narrador”, explica.

Hatoum acaba de ser indicado como finalista do prêmio de literatura em língua portuguesa Oceanos, com A noite da espera. O resultado do Oceanos será divulgado em 7 de dezembro. “Premiação te proporciona dinheiro, ainda mais para quem vive de literatura, e também é uma forma de divulgação. Mas o mais importante é o leitor atento, o leitor talentoso. Esses são os grandes prêmios. Na verdade, é um prêmio mais para o livro do que para o autor. Fico imaginando a recepção desse livro, que é ambientando na ditadura, neste contexto, com toda essa onda conservadora que paira sobre o Brasil”, diz.


DISCURSO

Assim que Bolsonaro venceu a eleição, no domingo passado, e fez seu primeiro discurso como presidente eleito, Hatoum postou em sua página no Facebook suas impressões. O escritor considerou um “vexame” e de “uma vulgaridade gritante (na forma e no conteúdo)”.

Hatoum escreveu: “Antes da fala, o eleito e seus assessores, orando de mãos dadas e olhos fechados, pareciam membros de uma seita religiosa fundamentalista, e não dirigentes políticos de um Estado laico. Não menos vulgares são os assessores e bajuladores que cercam o capitão.

Ao ver e ouvir as cenas patéticas da reza e da fala, me lembrei das frases de um conto de Tchekhov: ‘Estou cercado de vulgaridades por todos os lados. (…) Gente enfadonha, vazia… Não há nada mais medonho, mais ultrajante, mais deprimente do que a vulgaridade. Fugir daqui, fugir hoje mesmo, senão vou ficar louco!”.

A respeito dessa sua avaliação inicial, o escritor comenta, em entrevista por telefone ao Estado de Minas: “O que critiquei não foi a religião evangélica, mas o fato de você acabar de ser eleito representante de um país e de um Estado laico e começar a orar como se não houvesse pluralidade religiosa no país. Daquela forma, você desrespeita quem é católico, judeu, muçulmano, ateu... O Brasil não tem apenas evangélicos. A religião é algo íntimo. Não se deve fazer uma publicidade em cima disso”.

Hatoum se diz pessimista com relação ao novo governo. Considerando as ideias expressas por Jair Bolsonaro durante a campanha e também sua trajetória política, o autor diz não esperar nada dele. “E menos ainda de seus aliados. Não são poucos os oportunistas de plantão”, lamenta.
Com relação à cultura, a descrença é maior. “Eles odeiam cultura. O que esperar de uma figura que não tem vergonha nenhuma de afirmar que seu livro de cabeceira é a obra de um torturador? (A verdade sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça, do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra). Ele poderia ter escolhido um livro mais razoável, um best-seller, sei lá. Ele não esconde o que é. E isso acontece há 30 anos”, afirma.

Apesar do ceticismo em relação ao futuro próximo do Brasil, Milton Hatoum não refez seus planos profissionais. Segue lendo, escrevendo e dando palestras. Está concluindo a trilogia que considera seu projeto de vida. “A literatura não tem o alcance dos artistas populares – músicos, atores e cantores. Mas temos nosso pequeno nicho. A literatura sempre será um espaço de intimidade da inflexão e da imaginação. O que eu puder fazer, mesmo que seja pouco, farei contra qualquer ameaça à democracia e às liberdades.”

FÓRUM DAS LETRAS
Com o tema “Emergências: literaturas e outras narrativas”.

Até domingo (4), em Ouro Preto.
Mesa “Identidade e território literário”, com Milton Hatoum e mediação de Isabel Lucas.

Hoje (2), às 19h, na Casa da Ópera.

Programação gratuita.

Mais informações: Fórum das Letras

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