Realizar a curadoria de uma mostra que propusesse um olhar e um recorte sobre a produção de curtas-metragens dirigidos por negros e negras no Brasil vai muito além do processo-padrão de curadoria para um festival de cinema. Se o ato de escolher filmes – e, mais importante ainda, de deixar de escolher – implica desafios e responsabilidade, pois falamos de um campo que ainda necessita adotar o gesto político de fazer uma demarcação especial – “cinema negro” – como forma de existir frente ao hegemônico – “cinema”.
Os desafios são bem maiores ao considerar a falta de informações consistentes, organizadas e acessíveis acerca da existência do negro não como objeto do olhar, mas como sujeito dessa construção; as inúmeras violências entrepostas na formação do olhar, entre elas a epistemológica, que relega uma imensidão de obras ao depósito onde se enfiam os filmes menores; a falta de garantia de ter nossa fala apreciada – não seria o ato de olhar também uma forma discursiva.?
Todavia, meu desejo como curador foi transformar esse sentimento de responsabilidade em potência. Propor, em vez de apenas reagir ou responder. Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada é, sim, uma retrospectiva propositiva, que aponta possibilidades de encarar filmes realizados em diferentes momentos do Brasil, colocando-os para dialogar com a produção vibrante em curta-metragem dos últimos cinco, 10 anos. Vislumbra-se, assim, a forja de futuro(s).
Entre os muitos desejos, um deles é entrar num vespeiro e propor uma compreensão ampla do que é Cinema Negro – inclusive negando, se necessário, essa classificação “paralela”. Assim, os cinco programas foram organizados a partir de eixos que alinhavam os filmes: Família, Genocídio, Raízes, Diáspora e Corpo. No subtexto, colocam-se as perguntas: o que pode um artista negro que se expressa através da realização de filmes? De que é constituído seu universo de interesses estéticos e temáticos?.
Negros e brancos, uma situação relacional
“Cinema” e “Negro” não são signos estranhos um ao outro. Pelo contrário: no Brasil, onde há cinema, há negro.
Historicamente, a atenção à presença do negro no cinema – de longa ou curta-metragem – esteve focada quase que exclusivamente na representação, ou seja, na qualidade dessa presença em tela e, com raras exceções, debateram-se os porquês da ausência do sujeito negro na cadeira de diretor – ou seja, aquele que detém a agência do olhar. Várias questões permanecem sem resposta. Se no Brasil de 1968, um crítico como David E. Neves permitiu-se afirmar, no texto ‘O cinema de autor e de assuntos negros no Brasil’, que “o filme de autor negro é fenômeno desconhecido no panorama cinematográfico brasileiro” – ainda que tal diagnóstico passasse ao largo de Cajado Filho e Haroldo Costa, ambos negros –, no Brasil de 2018, porém, pode-se falar de um avanço, pois existe uma contranarrativa que briga para que negros contêm suas próprias histórias.
Sujeito(s) negro(s)
Difícil precisar a quantidade exata de curtas-metragens dirigidos e lançados por pessoas negras ao longo das últimas sete décadas. Se a situação da preservação da memória cinematográfica no Brasil é marcada por uma constante iminência da tragédia, quando se trata de diretores e diretoras negros o panorama é ainda mais frágil. Opera-se a equação do “comigo não morreu”: os filmes não são vistos porque não são preservados; se não são vistos, logo não são importantes; não são importantes, logo não é necessário produzir ciência e conhecimento acerca deles; sem ciência, não são importantes; não são importantes, então não são vistos; não são vistos, então não são preservados…
Qualquer tentativa de afirmações totalizantes esbarra na escassez de informação, na dificuldade do acesso aos filmes ou no tamanho da produção.
>>Raça ao centro: num amplo espectro estão, obviamente, as obras que tomaram a questão racial, especialmente o racismo, como objeto focal do filme, em que a existência do negro está condicionada à relação com o branco.
>>Raça como pano de fundo: uma porção significativa dos curtas, em especial os realizados por alguns pioneiros no formato (Odilon Lopes, Afrânio Vital e Adélia Sampaio, constituindo exceções Zózimo Bulbul e, em alguma medida, Waldir Onofre) trazem o componente racial como detalhe. Seja na não discussão do tema, seja na ausência de atores negros ou de elementos associados ao universo negro.
>>Registro documental: se contarmos nós mesmos as nossas histórias ainda representa um gesto político, entende-se a importância premente do documentário. Uma subdivisão disso seriam os filmes que celebram a(s) cultura(s) e a(s) vida(s) negra(s) do Brasil como gesto de proteção e preservação.
>> Desejo narrativo: um aspecto interessante de ser destacado e observado é como muitos dos filmes almejam ocupar explicitamente o campo do cinema narrativo de ficção. O que se explica, novamente, pelo desejo de nos vermos em tela.
>>Experimentação formal: ao mesmo tempo em que se verifica um desejo por narratividade, existem as obras que dialogam com ferramentas das outras artes – música e artes plásticas – ou se filiam a uma tradição mais radical de cinema.
>>Despertar racial: fenômeno de maior envergadura especialmente nos últimos três anos, diretamente conectado a uma ideia de empoderamento através da estética. Assumir o cabelo crespo, um dos marcadores da injúria racial no Brasil, apresenta-se com frequência. O que era motivo de chacota se transforma em orgulho e escudo.
Na última década, contudo, percebemos não só um aumento na quantidade de filmes produzidos, mas também na diversidade de abordagens e de temáticas. Mais do que isso, na expansão de ideias de negritude nos filmes. O que me parece bastante natural: quanto mais o debate racial se estabelece no Brasil – não apenas no cinema – e de forma menos equivocada, mais desobrigados os realizadores se sentem a, digamos, bater ponto em certos assuntos.
Uma projeção de futuro deve levar em conta um aspecto primordial: a busca pela liberdade. Entender o uso estratégico da ideia de essência ou vocação negra, mas abrir a janela para o ar entrar, permitindo a absorção de muitos aromas, aberto ao questionamento da “aspiração contínua de adquirir uma identidade ‘enraizada’ supostamente autêntica, natural e estável”, como afirmou Paul Gilroy, autoridade nos estudos culturais.
Com a “emergência das sensibilidades descolonizadas”, nos termos de Stuart Hall, os cineastas negros, ao filmar, detêm a agência do olhar e fazem (res)surgir questões frutíferas a iluminar nossos futuros: o que qualifica um negro que dirige um filme como um autor negro? Um negro que dirige deve procurar ser lido como um autor negro? Como verificar o caráter negro dessa autoria? Quais potências e limitações entram em cena quando estamos contidos nessas classificações? Quais problemas seriam disparados se nos dispuséssemos a fazer o movimento contrário e verificar o caráter branco numa autoria? Mais ainda, faz sentido, em 2018, seguir os rastros da “política dos autores”?.
Hall, novamente, expande os limites de compreensão, amplia as fronteiras e nos convida a vislumbrar o impossível. “Esses são os pensamentos que me impulsionaram a falar, em um momento de espontaneidade, do fim da inocência do sujeito negro ou do fim da noção ingênua de um sujeito negro essencial”.
*Curador da mostra Cinema negro, capítulos de uma história fragmentada, do FestCurtas2018. É crítico de cinema, pesquisador e professor e foi um dos curadores do Festival de Brasília (2017-18). Mantém o Urso de Lata (www.ursodelata.com.br)
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