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FestcurtasBH dedica atenção especial à produção de diretores negros

Léa Garcia é uma senhora solitária em O dia de Jerusa, de Viviane Ferreira, que presta homenagem à ancestralidade - Foto: FestCurtasBH / DivulgaçãoA baixa visibilidade dada à cinematografia negra pode levar ao erro avaliativo de que se trata de produção pequena em termos de volume e de linguagem. Não é verdade! O Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtasBH), em sua vigésima edição, traz o Cinema Negro para o centro e mostra que a produção nem é pequena, tampouco de baixa relevância formal. O evento começa nesta sexta (10) e segue até 19 de agosto no Cine Humberto Mauro e na Sala Juvenal Dias, no Palácio das Artes. “A relevância da mostra é jogar luz forte numa produção que, apesar do volume em quantidade, historicamente se manteve à margem”, afirma Heitor Augusto, crítico curador e mantenedor do site Urso da Lata. Ele é responsável pela curadoria da mostra Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada, que exibirá 25 filmes.

O FestCurtasBH se tornou espaço de visibilidade da produção curta-metragista e de discussão sobre o cinema contemporâneo. “Nesta edição, voltamo-nos para o Cinema Negro em consonância com a presença negra, com o debate atual de questões da cultura negra, tanto politica quanto esteticamente”, afirma a curadora Ana Siqueira.

Os 137 filmes selecionados serão exibidos nas mostras competitivas: nove filmes na mostra Minas, 17 filmes na Brasileira, 18 na Internacional. Nas mostras paralelas: cinco filmes na Atravessamentos – Memória da matéria, acessos alterados; seis no Extravasamentos – Torções do artifício, maneiras de saltar; quatro na Mulher – Corpo político; 14 na Juventudes; 13 na mostra Animação, 14 na Infantil e quatro na Maldito.

Uma das mostras será dedicada à filmografia da cineasta e produtora ganesa-americana Akosua Adoma Owusu. A mostra Tributo a Safi Faye homenageará essa diretora e etnóloga senegalesa.
Safi foi a primeira mulher da África subsaariana a dirigir um filme comercialmente distribuído, Kaddu beykat (1975).

Heitor lembra que o curta-metragem costuma ser visto como algo menor e, quando é feito o recorte racial nesse formato, a atenção dada a essa filmografia fica aquém da qualidade que eles apresentam. “A mostra permite que possamos assistir, construamos conhecimento em torno desses filmes, incorporemos a estética, a política e as questões propostas. Que saiamos do nosso lugar (cômodo) de espectador”, afirma.

O conjunto coloca uma questão para o espectador: O que estamos vendo e por que estamos vendo?. O curador destaca a importância da reflexão acerca de as razões de certos filmes integrarem um cardápio considerado indispensável. “Os filmes do cinema negro não fazem parte desse cardápio por questão estética, política, econômica, histórica e também racista?”, pergunta.

Como a produção não é pequena, o desafio para Heitor foi selecionar os recortes que comporiam a mostra Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada. “Um desafio foi construir intertextualidade entre os filmes. No processo de seleção, pensei individualmente nos mais variados valores e busquei também as conversas entre os filmes”, avalia.
A mostra está dividida nos eixos Família, Genocídio, Raízes, Diásporas e Corpos. “Não é fetiche de curador. Tem muito filme bom que não foi visto, exibido, debatido. Isso é gesto muito cruel para um filme”, afirma. Por isso, foi elaborado com esmero um catálogo com textos e informações sobre cada curta.

Elekô, filme dirigido pelo Coletivo Mulheres de Pedra, grupo que luta pelo protagonismo feminino no audiovisual - Foto: FestCurtasBH / Divulgação

Democratização

Heitor identificou ciclos, booms e microexplosões dessa produção negra. “Precisamos manter a constância e romper a lógica de interrupções”, diz. Ele identificou, nos últimos anos, aumento exponencial de filmes dirigidos por pessoas negras, principalmente curtas-metragens que são, financeiramente, mais acessíveis. “É resultado da democratização dos meios de produção, com equipamento mais barato, e, sobretudo, por causa da implementação de políticas públicas que transformaram a vida das pessoas negras”, afirma.
O próximo desafio, conforme aponta, é como os realizadores negros passarão de curtas-metragens para longas-metragens.

“Para continuar celebrando, é necessário que o boom no curta se traduza para o longa. Senão, não vai passar de um ciclo. Tenho mais fé nisso do que expectativa. Não é por conta dos realizadores, que são muito interessantes e múltiplos”, argumenta. A baixa expectativa se deve ao que ele considera como desmonte de políticas públicas, levando ao congelamento do investimento na cultura, na educação e em outras áreas. “Temo o avanço do debate nacional de discurso conservador e refratário ao debate identitário”, avalia.

Ana Siqueira lembra que Heitor Augusto traz à luz manifestos que tentaram intervir no fluxo dessa produção, ensaios e artigos de discussão mais conceitual. “O Heitor fez um trabalho de escavação para mostrar como foi pensado o negro no cinema”, afirma. Ressalta que desafio encontrado pela curadoria se relaciona à dificuldade de preservação dos filmes. “Muitos não foram preservados. Isso é mais agudo no Cinema Negro.
Recentemente, tivemos a valorização dessa produção”, ressalta Heitor. A proposta curatorial, como lembra, vem na esteira da produção atual. “Nos últimos anos, têm sido percebidos e celebrados outros sujeitos históricos filmando. Temos muitos filmes dirigidos por mulher.”

Não há resposta fechada sobre o que é o Cinema Negro. “Não tem uma resposta fixa. É uma resposta em construção. Existem marcadores compartilhados pela maioria dos pesquisadores que fazem parte do campo. O Cinema Negro é feito por pessoas negras, algo da ordem da autoria. Esse é o terreno comum”, diz. A partir desse ponto, há disputas sobre a forma de pensar o Cinema Negro.
Pode ser considerado Cinema Negro o que traz temas específicos da cultura negra para a tela. “O Vinícius Silva, que dirige Deus, filme premiado pelo 10ª Janela Internacional de Cinema do Recife, em 2017, tem desejo de cinema diferente de André Novais de Oliveira, que está na mostra com Quintal”, afirma.

O Cinema Negro ainda pode ser considerado algo da ordem da experiência, com filmes que buscam captar a vivência histórica negra. Há corrente que defende que o diretor ou diretora negra são livres para trabalhar com os temas que quiserem, sem que isso represente negação à negritude. “A caracterização de Cinema Negro não é só estética. É uma caracterização política, o desejo de marcar que eu faço Cinema Negro”, diz Heitor. Diante dessas definições, deriva outra pergunta: existe cinema branco?.

Ana Siqueira lembra que, juntamente à questão identitária, o festival debate o que essa produção traz para o cinema formal. “Como tenciona? Como esse cinema faz para trazer outras questões. Olhar para o Cinema Negro é olhar para o cinema”, diz. Ana destaca o quanto a forma é importante no cinema e como a entrada de outros sujeitos que filmam podem tencionar as formas. “Buscamos trabalhos inquietos, com um trabalho formal mais intenso. Nos filmes escolhidos, são indissociáveis forma e conteúdo”, diz.

Um exemplo da inventividade formal do Cinema Negro é o clássico Alma no olho (1974), de Zózimo Bulbul. “Zózimo é pai fundador do Cinema Negro, embora não seja o primeiro realizador. Essa atribuição é dada pela atuação política dele. Alma no olho é um filme absolutamente inventivo em termos formais. É um filme-performance: intervenção em um único espaço cênico e, ao mesmo tempo, é cinema.”

Ana lembra que não se pode cair na armadilha da essencialização na discussão sobre o que é ser mulher, ser negro, mas que, no entanto, esses sujeitos filmam os corpos de outra forma. “Vai mudar como se faz a iluminação. Por exemplo, os diretores de fotografia não sabiam fotografar o corpo negro. Vai afetar a forma como as narrativas são criadas.”

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