Em livro, Roberto Machado conta a relação pessoal com o pensador francês Michel Foucault

Impressões de Michel Foucault pontua os debates centrais da filosofia europeia das últimas décadas

Oscar Cirino

Roberto Machado frequentou cursos e seminários de Foucault no Collège de France - Foto: Arquivo Pessoal

Roberto Machado é um dos principais responsáveis pela difusão no Brasil do pensamento de um dos mais importantes filósofos contemporâneos: Michel Foucault. Traduziu alguns de seus livros, proferiu conferências, orientou teses, escreveu sobre sua obra e, aderindo a sugestões do próprio Foucault, empreendeu, com alguns amigos, importante pesquisa sobre a constituição histórica da medicina social e da psiquiatria no Brasil.

Roberto Machado, ademais, assistiu a cursos e seminários do filósofo no Collège de France, em Paris, entre 1973 a 1981. Desse contato intelectual surgiu, com seus mistérios, uma amizade tecida pelos estudos conjuntos na Bibliothèque Nationale, pelo prazer da boa conversa nos jantares e reuniões no apartamento de Foucault e pelas viagens por diferentes praias e cidades do Brasil.

Seu novo livro sobre o pensador francês, Impressões de Michel Foucault, é motivado pela saudade, definida pelo autor como a “vontade de eternizar a beleza das coisas que passam”. Ele se inicia e termina com o impacto e perplexidade causados pela morte inesperada, em 1984, de Foucault, aos 58 anos.

Na tentativa de deter a fugacidade do tempo, Machado recorre à memória, relembrando sua atividade política em organizações ligadas à Igreja, seu percurso intelectual e sua vida afetiva. A seleção dos episódios que constroem a narrativa contempla, concomitantemente, a memória individual do autor e a memória coletiva, tanto da situação política e universitária brasileira como do contexto intelectual europeu a partir dos anos 1960.

Sem temer a mudança, o autor ousou uma escrita bem diferente de seus reconhecidos artigos acadêmicos e livros anteriores sobre o pensador francês – Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Foucault (Graal, 1981) e Foucault, a filosofia e a literatura (Zahar, 2000). Nesses textos, a articulação rigorosa dos conceitos e argumentos, como requer a tradição filosófica, é empreendida com afinco e clareza.

Agora, o filósofo brasileiro nos apresenta essas “impressões”, que, como indica o Houaiss, constituem um “gênero literário próximo da crônica em que se mesclam sensações, sentimentos, reflexões e relatos”. A leveza de seu estilo envolve o leitor em passagens saborosas. Por exemplo, quando convida Michel – é assim que Foucault muitas vezes é íntima e afetuosamente nomeado – para provar o suco do “fruto de sua infância”, e este lhe diz sem piedade que não gostou.

Apesar de radicado há anos no Rio de Janeiro, os vestígios de sua infância e juventude no Nordeste ressoam em sua voz e nesta descrição poética que faz da mangaba: “Uma frutinha delicada, de sabor doce-amargo, casca macia finíssima, menos que casca, simples película”. O último capítulo, “A terra do sol”, narra, quase como um roteiro turístico-afetivo, o tour que realizou com Foucault pela orla de Salvador, por Olinda e pelo agreste pernambucano.

O apreço conceitual

No entanto, o livro não se restringe ao testemunho das marcas produzidas pelos gestos e sorrisos, pela coragem e comentários de Michel.  Sua vertente filosófica se manifesta nas sínteses primorosas das mais importantes ideias dos principais livros de Foucault, como também dos livros do próprio autor. Ele deixa claro a importância de não se criar uma “ilusão retrospectiva” na leitura da obra do pensador francês, ainda que o próprio Foucault faça isso algumas vezes em entrevistas. Em outras palavras, trata-se de não projetar o Foucault mais recente para entender o Foucault do passado. O pensamento dele não é sistemático e ele não se apega ao que já havia postulado, preservando a liberdade de se desprender e propor novos caminhos. Talvez, um dos poucos traços constantes, em sua proposta de estudar os problemas filosóficos da verdade e do conhecimento por meio de análises históricas, seja a importância dada à dimensão instrumental do pensamento, visando sacudir evidências e impulsionar lutas políticas concretas.

Para quem deseja pesquisar utilizando as ideias de Foucault, o autor sugere que os cursos no Collège de France – quase todos já traduzidos no Brasil – são bem mais interessantes do que seus livros. Nos cursos é possível acompanhar o modo como Foucault pesquisava e trabalhava na elaboração de seu pensamento, enquanto os livros já seriam a conclusão do processo.

Na busca de um estilo
Em seus estudos em Paris, na maioria das vezes realizados nas férias universitárias no Brasil, Machado seguiu as aulas de Jacques Derrida (1930-2004), Roland Barthes (1915-1980), entre outros, além de Foucault e Gilles Deleuze (1925-1995). Como também já era professor, ao mudar de papel o autor acompanhava não só o conteúdo, mas também o estilo das aulas e, nesse percurso, concluiu que “um professor é antes de tudo um aluno capaz de escolher o tema de seus estudos e se dedicar a ele enquanto lhe interessa”.
De todos esses mestres, entusiasmou-se, além de Foucault, especialmente com Deleuze, que orientou seu pós-doutorado e cuja obra motivou traduções e também a escrita de dois livros. Seguiu durante anos seus cursos, juntamente com os de Foucault, e se encantou com a maneira prazerosa e elegante que ele transmitia seu enigmático pensamento.

Desse modo, podemos compreender por que a relação e o contraponto entre Foucault – um pensador sem aliados –, e Deleuze – um filósofo da aliança – são contemplados em dois capítulos: “Uma época, dois estilos” e “Amigos separáveis”. Neles, além de comparar o estilo dos dois filósofos, no modo como ministravam suas aulas ou como coordenavam seus seminários, levanta hipóteses sobre os motivos da separação entre os outrora bons amigos e parceiros.

Michel Foucault manteve a liberdade de reformular seu pensamento ao longo da vida - Foto: ReproduçãoO panorama intelectual europeu da época é abordado em torno de debates e polêmicas, seja pela busca da filosofia francesa de se afirmar diante da tradição filosófica alemã, seja em torno da relação de Foucault com a fenomenologia, o existencialismo, o estruturalismo, Louis Althusser (1918-1990), Jürgen Habermas, a Escola de Frankfurt, sendo que as questões suscitadas pelo pensamento de Karl Marx (1818-1883) e pela psicanálise, em especial Jacques Lacan (1901-1981), recebem tratamento privilegiado.

Apesar de destacar o humor, a descontração e elegância de Foucault, Machado não deixa de apresentar o aspecto rancoroso, às vezes cruel, do filósofo com alguns assistentes de seus cursos ou seminários e, especialmente, com aqueles que o criticaram política e intelectualmente, como Jean-Paul Sartre (1905-1980), Simone de Beauvoir (1908-1986), Derrida, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Jean Baudrillard (1929-2007), ou o cineasta Jean-Luc Godard.

Roberto Machado foi impactado, em uma de suas passagens por Paris, pela pergunta de um dos participantes dos seminários de Foucault: “Então, você é o apóstolo no Brasil?”. Essa pergunta surpreendente – que obteve como resposta “sou um simples discípulo. Apóstolos são os que vivem em torno do mestre” – seguramente produziu efeitos fecundos para se afastar da confortável, mas preguiçosa, “sombra de um gigante”, título de um dos capítulos do livro. Em momento de maturidade intelectual, o autor, sem desconsiderar tudo que Foucault lhe transmitiu, prosseguiu seus estudos e pesquisas temáticas em Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Deleuze, sobre o nascimento do trágico no pensamento alemão, Marcel Proust (1871-1922) e as artes.

Ao cativar o leitor com a fluidez de uma escrita que entrelaça a precisa exposição das ideias de um dos mais importantes pensadores contemporâneos com relatos aprazíveis dos impactos causados pela intensidade de sua presença, essas Impressões de Michel Foucault passam a ocupar lugar singular no panorama filosófico brasileiro.

 

Psicanalista e mestre em filosofia.

 

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT
De Roberto Machado
N-1 Edições
240 páginas
R$ 50

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