Pioneirismo brasileiro de valorizar e reconhecer a importância do patrimônio moderno é pouco divulgado

No Brasil, a primeira obra contemporânea reconhecida como patrimônio nacional pelo Sphan ocorreu em 1948: a Igreja de São Francisco de Assis, inaugurada cinco anos antes, em BH

Hugo Segawa

A Catedral de Brasília se tornou monumento nacional em 1967, antes mesmo de ficar pronta - Foto: Tina Coelho/CB/D.A. Press

O pioneirismo brasileiro de valorizar e reconhecer a importância do patrimônio moderno é pouco divulgado. No entanto, a arquitetura do século 20, ainda na década de 1940, obteve reconhecimento formal por meio do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Essa instituição ousou atribuir valor patrimonial à arquitetura contemporânea antes que a Europa adotasse a prática de preservação do moderno. Em alguns países europeus, havia normas que não permitiam o reconhecimento oficial como patrimônio para obras arquitetônicas com menos de 50 anos de existência, ou que seus autores estivessem vivos. Foram regulamentações restritivas que influíram nas práticas de preservação em toda parte – menos no Brasil.

Um primeiro momento: 1948-1967

No Brasil, a primeira obra contemporânea reconhecida como patrimônio nacional pelo Sphan ocorreu em 1948: a Igreja de São Francisco de Assis, inaugurada cinco anos antes, em Belo Horizonte, parte de um conjunto de prédios projetados por Oscar Niemeyer para a região da Pampulha desde 1939. Também em 1948, a sede do então Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, projeto de 1936 de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcellos, tendo como consultor o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, foi apontado como patrimônio nacional.

Até 1967, mais quatro obras modernas foram listadas pelo Sphan: em 1957, a Estação de Hidroaviões, no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, um projeto de Attilio Correa Lima e equipe, inaugurada em 1937; em 1959, o “Catetinho”, edifício provisório construído como uma pousada para o presidente Juscelino Kubitschek perto da área de construção da nova capital, em Brasília; em 1965, o Parque do Flamengo, o grande aterro na orla da cidade do Rio de Janeiro, transformado em um parque público de 1,2 milhão de metros quadrados, com projeto paisagístico de Roberto Burle Marx; em 1967, a Catedral de Brasília, mesmo inacabada, foi reconhecida como monumento nacional.

Uma peculiar combinação de fatores políticos e culturais configurou essa prematura aproximação da modernidade arquitetônica e paisagística como parte da constituição da identidade nacional. No Ministério da Educação, responsável pelas políticas de preservação do patrimônio cultural, as cabeças eram modernistas. Elas formularam as diretrizes na qual o moderno era uma dimensão cultural aceita e exaltada pelo Estado.

A consagração de uma modernidade: as décadas de 1980 a 2000

Mesmo após as mudanças políticas de 1960 e 1970, a arquitetura moderna de meados do século 20 continuou em foco no campo da preservação.

O edifício da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), projetado pelos Irmãos Roberto, no Rio de Janeiro, inaugurado em 1938, foi reconhecido como patrimônio em 1984; o Park Hotel, na cidade de Nova Friburgo, e os edifícios residenciais Parque Guinle, Rio de Janeiro, ambos projetados por Lucio Costa em 1942, foram reconhecidos como patrimônio em 1985 e 1986, respectivamente; também em 1986, o conjunto de casas modernistas de autoria de Gregori Warchavchik, em São Paulo, foi listado como patrimônio nacional.

Em 1987, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconheceu o plano piloto de Brasília, de Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx, como patrimônio mundial, o primeiro trabalho moderno da lista do organismo internacional.

O reconhecimento do patrimônio moderno no Brasil antecipou e teve curso paralelo ao surgimento de organizações internacionais preocupadas com a preservação da arquitetura moderna, como o International Working Party for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighborhoods of the Modern Movement (Docomomo), criado na Holanda, em 1988.

A própria Unesco, que, seguindo diretrizes tradicionais da legislação europeia, desconsiderava o reconhecimento das realizações urbanísticas e arquitetônicas “recentes”, isto é, do século 20, teve que reconceituar sua atuação. Brasília foi o ponto de inflexão.

Em 1997, o conjunto arquitetônico da Pampulha foi listado como patrimônio nacional; vários edifícios na cidade de Cataguases, em Minas Gerais, projetados por arquitetos do Rio de Janeiro como Oscar Niemeyer, Irmãos Roberto, Aldary Toledo, Carlos Leão, Francisco Bolonha, Roberto Burle Marx, e com a participação de artistas como Cândido Portinari, Bruno Giorgi, Emeric Marcier e outros, caracterizam um conjunto de arquitetura, arte e paisagem relacionado com um momento do desenvolvimento industrial e cultural daquela cidade, que mereceu atenção do então rebatizado Iphan em 2003. Em 2008, o edifício do Museu de Arte de São Paulo (Masp), projetado por Lina Bo Bardi e inaugurado em 1969, foi listado. Em 2012, a cidade de apoio à mineração, Vila Serra do Navio, construída entre 1955 e 1960 no então território do Amapá, com projeto urbanístico e arquitetônico de Oswaldo Arthur Bratke, foi incluída entre os bens culturais de interesse nacional.

No novo milênio, a arquitetura identificada como art déco, uma vertente da modernidade do século 20, também ganha reconhecimento com a listagem em 2005 de vários edifícios na cidade de Goiânia (fundada em 1933) e do Elevador Lacerda, em Salvador, inaugurado em 1929 e listado pelo Iphan em 2011.

Há futuro para a modernidade do século 20?

O Estádio do Maracanã foi reconhecido como patrimônio nacional em 2000. No entanto, com a Copa do Mundo de 2014, o simbólico estádio inaugurado em 1950 foi completamente renovado, a fim de atender regulamentos da Fifa, apesar de todas as cautelas que seriam desejáveis como bem protegido pelo Iphan. Não foi apenas uma adaptação do existente para o padrão atual. As modificações estruturais transformaram-no em um novo edifício, com aparência anterior relativamente mantida.

Edifícios esportivos estão entre os principais desafios da preservação moderna, considerando-se as mudanças das normas de segurança, conforto e regras dos jogos. O lendário Estádio de Wembley, de 1920, templo simbólico no país que inventou o futebol, foi totalmente demolido em 2003, para dar lugar ao novo estádio projetado pelo arquiteto sir Norman Foster. Na América do Sul, segue em jogo o Estádio Centenário, em Montevidéu, campo da primeira Copa do Mundo de futebol, em 1930, e, certamente, o testemunho mais importante da época do início da consolidação do futebol como um esporte global. Íntegro em sua arquitetura, mas não mais adequado como um lugar para os jogos oficiais de acordo com padrões internacionais. Até quando?

O Sítio Santo Antônio da Bica é um refúgio ecológico, laboratório de experiências do seu criador e morador, o paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994). O sítio foi reconhecido como um patrimônio nacional em 2003 e hoje é propriedade do governo federal. As condições de preservação parecem ideais.
Todavia, desde a morte de seu criador não houve uma documentação sistemática do lugar. Qual é o significado dessa documentação? Esse patrimônio não é um edifício, que pode ser registrado com desenhos arquitetônicos e fotografias em seus pormenores. A questão é: como se documenta uma paisagem?.

Além de ser um lugar em constante mudança, por se constituir de organismos vivos – a vegetação –, sua organização resultava do olhar experimental de seu criador, Burle Marx. Há, portanto, dois momentos: antes e depois de Burle Marx. Não há maneira de “congelar” o “antes” porque é uma paisagem dinâmica. O risco de esperar passivamente o “depois” é que, sem alguma forma de gestão ou critérios de conservação e manutenção, em poucos anos o ambiente não será mais aquele que o paisagista nos deixou. A criatura viva, sem o seu criador: como preservar?.

A preservação da paisagem, do ambiente, é um tema forte do século 20. A Ciudad Abierta de Ritoque, na região de Valparaíso, Chile, é um desafio. Uma criação coletiva de professores, alunos e artistas da Escola de Arquitetura da Universidade Católica de Valparaíso, fundada em 1971, com uma área de cerca de 300 hectares como um campo experimental de criação, até hoje mantido pela Cooperativa Amereida por seguidores do grupo que a concebeu, em boa parte falecidos.

Ritoque certamente constitui uma das mais provocantes e criativas invenções latino-americanas, ainda viva e em plena atividade. No entanto, transformando-a em patrimônio sob as regras tradicionais, arrisca-se produzir um “congelamento” de um organismo vivo.
Os mecanismos correntes de preservação do patrimônio estão preparados para reconhecer tal criação moderna, ainda em movimento?

Outros desafios de mesma complexidade poderiam ser evocados. As habitações coletivas de interesse social são criações da modernidade. Herdeiras das vilas operárias do final do século 19 e início do 20, o 3º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam), em Bruxelas, em 1930, estabeleceu propostas a partir da contribuição do arquiteto germânico Walter Gropius para a forma urbana e arquitetônica de conjuntos habitacionais que se desenvolveram com inúmeras variações em meados do século 20 em toda parte, especialmente na América Latina.

Conjuntos como o Pedregulho (1947), projetado por Affonso Reidy, no Rio de Janeiro, o 23 de Enero (1954), por Carlos Raúl Villanueva, em Caracas, ou o conjunto Presidente Alemán (1947), por Mario Pani, no México, D.F., são exemplos de propostas de habitação em larga escala construídas em programas de urbanização que resultaram de uma atitude de organização das cidades latino-americanas que devem ser reconhecidas como patrimônio cultural da modernidade. Mas também eles envolvem as delicadas tramas e dramas sociais na realidade atual daqueles que os habitam. Questões que estão além do campo da preservação em si mesma.

O século 20 acabou, mas sua vigência não. Ele nos deixa um legado patrimonial extraordinário, a maioria dos quais ainda em uso. Há de se imaginar a complexidade de enfrentar a conservação desses bens culturais frente aos desafios de reconhecer o valor dessas realizações ainda vivas – e sem “matá-las”.


* Hugo Segawa é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor de Arquiteturas no Brasil – 1900-1990.

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