Filósofo Jacques Poulain analisa como a política deve incorporar mecanismos de diálogo

Autor do conceito de transculturalidade ele defende que os avanços sociais dependem de um diálogo amplo

por Carolina Braga 29/04/2016 11:39

Em um mundo regido por tanta intolerância, é possível constatar que as políticas interculturais dão sinais de que não são suficientes para reger a convivência entre os povos. É neste cenário que cresce a curiosidade acadêmica acerca do conceito de transculturalidade, defendido pelo professor francês Jacques Poulain. Durante os anos 1970 e 1980, Poulain foi professor da Universidade de Montreal, período em que trabalhou com o filósofo Jean François Lyotard. Ele participou das pesquisas que deram origem ao livro A condição pós-moderna, hoje já praticamente um clássico da sociologia. Atualmente responsável pela cátedra de filosofia da cultura e instituições culturais da Unesco, esteve em Belo Horizonte para debater os desafios das políticas transculturais para a transformação social. Mas o que é transculturalidade?

De acordo com Poulain, a transculturalidade propõe uma contaminação bilateral entre culturas diferentes, num processo dialógico. É conceito distinto de interculturalidade. Este também prevê o diálogo entre os povos de culturas diferentes, mas pressupondo a ideia de tolerância. Segundo o filósofo, a transculturalidade é uma porta para se pensar temas polêmicos da contemporaneidade, como a convivência pacífica entre o Ocidente e o mundo islâmico, o racismo, o feminismo e outros. Veja os principais pontos da entrevista que concedeu ao Pensar.

 

De que forma as políticas transculturais podem colaborar para a transformação social?
As políticas públicas transculturais não só colaboram, mas são necessárias para realizar transformações sociais. Atualmente, todo diálogo social se tornou impossível devido a uma mundialização na qual os Estados de direito encontram-se paralisados por grandes dívidas acumuladas e pelo transbordamento de suas jurisdições realizado pelas multinacionais, assim como pela especulação financeira de mercado e de suas moedas. O neoliberalismo criou uma situação na qual os pobres e excluídos tornaram-se incapazes de expressar suas “vozes”. Ao mesmo tempo, os políticos foram reduzidos ao status de metaempreendedores das condições de sobrevivência de seus povos. O consenso cívico e civil que eles deveriam realizar encontra-se, desta maneira, neutralizado. Somente uma política transcultural pode demonstrar que a imagem do ser humano, herdada do modelo neoliberal capitalista hobbesiano, é falsa. O Estado de direito detém, portanto, a função cultural de organizar a possibilidade de construção de um mundo comum para todos os atores sociais, construído sob a égide do acesso comum à Justiça, promovendo o diálogo social graças ao diálogo cultural e à formação de uma faculdade de julgar que permita a todos os atores sociais fazerem parte da construção deste mundo de maneira igualitária.

Como funciona a relação entre Estado e os diferentes setores da sociedade?
Uma vez que o Estado-nação viu sua função reduzida às operações de pacificação de indivíduos e de grupos entendidos como insociáveis, desde que este diálogo encontre-se rompido como atualmente está, as oligarquias mundiais projetam ao bel-prazer a responsabilidade de fracassos econômicos sobre os governos que procuram salvaguardar a paz social através de diálogo e justiça sociais. Torna-se fácil, às oligarquias, imputar dificuldades financeiras às ações do Estado reduzindo sua função meta-empreendedor em um contexto mundial de “supertribunalização” e de criminalização global não somente das minorias e dos excluídos, mas igualmente dos governantes que rompem com esta lógica. Pretendem, como fizeram todos os ditadores do passado da América Latina, impor o estabelecimento da ordem através da pura obrigação legal, mesmo tratando-se de indivíduos infinitamente mais corrompidos do que aqueles que são por eles acusados de corrupção.

Como a política transcultural pode romper esta lógica?

A política pública transcultural precisa, portanto, restabelecer um diálogo cultural e social com aqueles que participam da própria construção desse mesmo Estado a partir de suas diferentes manifestações culturais. A política pública transcultural precisa formar parcerias sociais, tendo em vista o quadro da diversidade cultural, através de sua capacidade de restabelecer a participação de todos na construção de um mundo que não seja apenas justo a nível social, mas que saiba também respeitar a capacidade de julgamento das diferentes culturas enquanto formas de vida nas quais elas mesmas aspiram florescer, que consiga promover justiça transcultural fazendo convergir as diferentes formas de desenvolvimento e êxito de diferentes indivíduos e grupos socioculturais.

Quais os desafios para se desenvolverem ações transculturais em um país como o Brasil, sobretudo em um contexto político tão tumultuado como nosso?
No que diz respeito ao desenvolvimento de ações transculturais, os desafios enfrentados por um país como o Brasil são, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes aos de outros países latino-americanos. Como o desenvolvimento de países da América Latina dependeu do risco, de sucesso e de fracasso, dos Estados Unidos, este desenvolvimento se apresenta como repercussão destes mesmos riscos como se fossem semelhantes a catástrofes naturais ou casos fortuitos, eventos de natureza incontrolável. As ditaduras impostas na América Latina foram beneficiadas para estabelecer um tipo de resignação quanto a essa política. Os governantes que tentaram restabelecer um equilíbrio com os países dominantes do Norte tiveram que lutar para impor uma justiça social e abrir um espaço de educação cultural que pudesse tornar perene o regime de justiça social levado a seus povos. Uma vez que o equilíbrio mundial – e isso inclui tanto a América Latina quanto a Europa – depende do risco do neoliberalismo norte-americano, a perenidade do equilíbrio da Justiça está sempre ameaçada devido às interconexões entre o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Central dos EUA, devido ao que J. Stiglitz denominou Consenso de Washington. A deterioração produzida pelo endividamento de todos esses Estados tornou impossível este equilíbrio mundial no momento em que a estabilidade do mundo foi atrelada ao monetarismo do dólar, conforme demonstrou I. Varoufakis em sua obra Minotauro planetário. Para que todos possam julgar este mundo de maneira igualitária, é preciso mobilizar todas as forças intelectuais e culturais do mundo para ajustar os Estados-nação aos seus ideais de desenvolvimento e de dignidade cultural.


Jacques Poulain


No caso do Brasil, qual é o maior desafio?

O desafio conjuntural que o Brasil encontra atualmente se deve ao modo pelo qual o consenso social foi instrumentalizado para bloquear o modelo de justiça social e cultural que o Partido dos Trabalhadores, já há algum tempo, conseguiu estabelecer. O diálogo cultural e transcultural, promovido por uma política pública transcultural, deve ser consideravelmente crítico no intuito de julgar a situação real do país em comparação à situação de países semelhantes e que vivem desafios análogos. Como este desafio depende de uma criminalização do governo, é sumário encará-lo e resolvê-lo tratando-o como advindo de um problema cultural de manipulação. Deve-se apontar e denunciar a total ausência de objetividade jurídica. Atualmente, as acusações recebidas pelo governo dizem respeito ao que o Estado-nação metaempreendedor deve recorrer para manter o ideal de perenidade do modelo de justiça social e cultural diante do neoliberalismo e das injustiças monetárias cegas cometidas com os países da América Latina em nome do Consenso de Washington.

Tendo experiência com governos latino-americanos, quais são os obstáculos mais urgentes do nosso continente para a efetiva aplicação da transculturalidade?
O Brasil é conhecido por ter enfrentado durante décadas o problema de integração cultural efetiva das populações advindas dos escravos negros explorados, por exemplo, nas minas de ouro e de diamantes. O país enfrentou esta questão organizando uma educação que, do ensino fundamental ao superior, procura integrar esta população a partir de um modelo que promove a justiça educacional republicana, de origem europeia. O obstáculo que ele encontrou gira em torno da própria concepção de Estado-nação e de sua secularização do ideal do bem-estar social. Se levarmos a sério aquilo que nos ensina a antropologia cultural da linguagem, devemos constatar que o que distingue a cultura deste país é justamente sua capacidade de integrar as diferentes culturas que nele vivem tornando-se, assim, modelo encarnado daquilo que Edouard Glissant denominou de “crioulização”. A crioulização se desenvolveu no Brasil a partir da experimentação artística que diversas culturas do mundo desejam e almejam ter. Portanto, é mais fácil uma política pública transcultural brasileira colaborar na compreensão de como esta inventividade artística cultural, baseada em um imaginário transcultural, poderia desenvolver a mesma fusão no espaço de formação do julgamento cultural de todos, pensado a partir deste modelo artístico.

Acredita que os governos estão preparados para aplicar a transculturalidade?
Essa pergunta pressupõe que os governos sejam autônomos e tenham consciência do dever de aplicarem esta politica pública transcultural. Estejam eles prontos ou não, minha resposta é que os governos sejam instigados a aplicá-la a todo momento em que devem se confrontar com o modelo neoliberal em suas decisões tomadas no horizonte do jogo de forças do capitalismo. Para julgar os jogos de força do capitalismo de modo objetivo, é preciso que os governos possam tomar decisões aceitáveis pelo seu próprio Estado-nação e por outros paísescomo advindas de um julgamento político e cultural objetivo e aceitável por todos. A possibilidade de, em algum dia, os governos se darem conta disso está ligada a suas próprias capacidades em transformar seus Estados neoliberais e hobbesianos em Estados transculturais.

Acredita que o mundo poderá ser um dia de fato transcultural?

A única solução seria, antes de tudo, cultural e não militar. Ela consiste em produzir um diálogo em nível das culturas que inspiram esta recaída na instrumentalização da religião, fazendo reconhecer que, nos dois casos, o que se busca como apropriação de verdade cultural é o mesmo: estar habilitado a julgar suas próprias condições de vida, assim como julgamos o que dizemos e o que pensamos desde que o homem criou suas condições de vida, submetida esta última à lei de verdade. Isso tudo pressupõe que podemos substituir, em nível de consciência individual e coletiva, a capacidade do futuro do homem, do devir, pela submissão a este julgamento, ao que se produz em todas as universidades do mundo na medida em que o julgamento crítico que nelas é forjado já se encontra submetido a esta lei.



O que o mundo capitalista ocidental tem de mais urgente a aprender com a transculturalidade?

O mundo capitalista contemporâneo precisa aprender que o contrato econômico que ele realiza, à moda das roletas-russas ou das apostas de corrida de cavalos, não pode regular a evolução de um mundo justo sem submeter a experimentação do mundo pelo consenso social à ação de se compartilhar julgamento de equidade aceitável por todos. A lição que o mundo capitalista recebe da antropologia transcultural é que não podemos forjar um homem enquanto espectador cego das condições de vida de seus membros. Enquanto as religiões recorrem a Deus ou aos deuses para julgar a evolução do mundo, os regimes políticos fundados no uso de um julgamento cultural e transcultural recorrem necessariamente ao uso de um julgamento apto a reconhecer que é plenamente possível à humanidade e não do sobrenatural, se desenvolver como advinda de sua verdadeira humanidade, através das culturas. A pacificação capitalista do homem que tornaria possível o controle de sua própria experiência não pode felizmente ficar para amanhã, nem para qualquer futuro próximo, uma vez que a antropologia transcultural ensina a este capitalismo que ele deve passar pelo julgamento universitário crítico que julgará a objetividade de seus resultados.

Gostaria que comentasse a experiência mais bem-sucedida de aplicação do conceito.
A experiência mais eficiente de aplicação deste conceito de transculturalidade foi a que permitiu, por mais de 15 anos, restaurar o diálogo crítico entre as universidades e os filósofos dos dois lados do Mediterrâneo. As culturas que se encontravam na prática do julgamento crítico, no ato de discernir suas divergências, caminharam no sentido da cultura do “viver junto”, ou do “conviver”, para se realizar nas condições de justiça e felicidade mútuas desejadas. Necessitamos deste julgamento transcultural para reconhecer o uso comum deste julgamento crítico, garantia única da objetividade de uma cultura e da autenticidade da humanidade para a qual ele direciona o homem. Obviamente, esta experiência encontra-se inacessível para todos os que creem ainda que o fenômeno do jihadismo é suficiente para o reconhecimento deste encontro transcultural enquanto algo que não pode ter lugar no mundo, se essa experiência for analisada sob critérios de realização da extinção ou fim da humanidade. Toda transformação histórica direta de si mesmo, buscada pela vestimenta estática, é inacessível, tendo em vista a falsidade da imagem do ser humano realizada e validada como verdade antropológica inquestionável.

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