'Onde o mar descansa' lança novo olhar para as relações afetivas a partir da psicanálise

Debate sobre filme pretende levantar questões sobre a histeria e o corpo feminino

por Márcia Maria Cruz 29/04/2016 11:26
Reprodução
(foto: Reprodução)
Como construção social, cultural e histórica, a ideia do feminino muda a partir de um embate diário entre as corporalidades das mulheres e a forma como essa imagem da mulher é construída em diferentes campos sociais, no âmbito da vida privada, em que se dão as relações pessoais, e na vida pública, em que estão o trabalho, a produção cultural e artística e a política. Essa costura fina muda de tempos em tempos. A ideia de feminino expande quando ela não dá conta de englobar diferentes formas de ser. Essa reflexão é parte das questões que serão tratadas no debate “A histeria no século 19 – A opressão do corpo feminino”, no Cine Belas Artes, em Lourdes, em Belo Horizonte. A discussão, que contará com a presença de psicanalistas, nasce das questões suscitadas pelo filme Onde o mar descansa, dos diretores Andre Semenza e Fernanda Lippi.

Onde o mar descansa trata da separação entre duas mulheres a partir de uma linguagem fílmica que dialoga com a poesia e a dança contemporânea. Ao construir um poema visual, os diretores buscaram elementos na obra do poeta inglês Algernon Charlies Swinborne (1837-1909), nome expoente do movimento decadentista na Europa do século 19. “Embora Swinborne fosse agnóstico, os poemas têm forma, principalmente no que se refere à musicalidade, semelhantes aos textos bíblicos, mas tratam de questões como o sadomasoquismo e o lesbianismo”, afirma.

Para construir a narrativa, Fernanda fez ampla pesquisa da antologia lésbica. Ela bebe na fonte de duas escritoras de períodos distintos – Renée Vivien (1877-1909) e Katherine Phillips (1632-1634) –, que encontraram na poesia a possibilidade de ser e viver o que nos séculos 17 e 19 ainda era tabu. Elas subvertiam a ideia de mulher ligada apenas à esfera privada e buscavam as artes, dominada pelos homens, para manifestar o afeto e o amor por outras mulheres. Muitas vezes, escreviam com pseudônimos e usavam peças do vestuário masculino como forma de se afirmar. Renée e Katherine questionavam a identidade mulher, mas, paradoxalmente, ao se aproximar do universo masculino, ampliavam as fronteiras do feminino.

Ao acompanhar as cenas de Onde o mar descansa, muitas vezes, não é possível decifrar se são momentos vividos pela protagonista ou se são a expressão do subconsciente. O filme provoca uma viagem à vastidão da mente e, por essa característica, estabelece diálogo com a psicanálise. Fernanda reconhece que o diálogo não foi algo pensado a priori. “Quando pesquisei a antologia lésbica, percebi como era presente a questão da histeria no século 19, tema fundamental a Freud”, diz. A ideia do diálogo surgiu depois de o filme, ambientado na Suécia e com distribuição internacional, começar a ser exibido no Brasil.

A psicanalista Juliana Marques Caldeira Borges, que participará do debate, lembra que a histeria, para Sigmund Freud, era entendida de forma bem distinta à ideia do senso comum, como sendo o descontrole feminino. “A histeria surge a partir do conflito inconsciente em que o pensamento barrado pela censura não pode vir à consciência, é recalcado. O afeto relacionado a esse pensamento será convertido no corpo da mulher”, lembra Juliana, presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).

Ao acompanhar o trabalho de um neurologista, Freud encontrou o fio da meada de sua obra que é marco na psicologia e referência para todos os campos do conhecimento. “Ele percebeu a expressão de algo que não estava no real do corpo. Freud passou a observar os sintomas que se apresentavam, na maioria das vezes, em mulheres”, diz. Ao falar do inconsciente, o pai da psicanálise descortinou o universo da mente humana. Nessa direção, Juliana ressalta como o questionamento do lugar do feminino foi fundamental para a teoria que se tornou paradigma para compreender o comportamento humano.

Por essa origem feminina da psicanálise, não cabe espanto que a teoria ajude a interpretar o argumento central de Onde o mar descansa. “São cenas de uma mulher sozinha se debatendo, chorando, caída, dançando desarvoradamente pela perda do objeto amoroso, entregue ao puro inconsciente. Não há como simbolizar a dor. O corpo é a expressão dela”, afirma Juliana. Ao olhar para o corpo feminino do século 19 – fonte de inspiração para a narrativa que apresenta a relação de duas mulheres do século 21 –, a psicanalista lembra que a construção do feminino possibilita novas formas de amor. “A mulher mostra que é possível existir sem ser toda”, diz. A psicanálise ajuda a desconstruir o masculino como o lugar da onipotência.

Ao masculino era atribuído o lugar do todo, do poder, da determinação de como deveriam ser todos os corpos, inclusive o feminino. Ao deslocar o olhar para o feminino, como o lugar da falta, a psicanálise permite uma forma de amor que aceite a imperfeição, a não completude. Não que o feminino seja a falta, mas, ao questionar o masculino como o lugar do todo, abrem-se possibilidades para novas formas de afeto e de expressão dele. Nessa direção, a obra de Freud aponta para a importância da sexualidade como algo que perpassa todas as atividades da vida. A sexualidade é a forma como o sujeito se coloca nos mais diferentes campos em busca do prazer. O resgate do feminino permite a existência de um amor que contempla a falta. “É o amor que vem das relações mais respeitosas, mais humanas”, explica.

A psicanalista lembra que é importante fazer o resgate desse sentimento num momento de intolerância e agressividade, que se manifesta muitas vezes sob a forma de perseguição a quem tem relações homoafetivas. Caso recente foi de Luana Santos, mulher negra e lésbica que foi espancada até a morte pela polícia na periferia de Ribeirão Preto, em São Paulo. A psicologia aponta que Onde o mar descansa, mais do que falar sobre o amor entre duas mulheres, defende a possibilidade de diferentes maneiras de se construírem afetos e os desafios que isso implica.

O debate contará com a participação do teatrólogo e neurocirurgião Jair Leopoldo Raso e do psiquiatra e neurocientista da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Humberto Correa. A mediação será do diretor científico da Academia Mineira de Medicina, o psiquiatra José Raimundo Lippi.

Debate: A histeria no século 19 – A opressão do corpo feminino
Após a sessão do filme Onde o mar descansa.
Sábado (30), às 10h (projeção). No Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1.581, Lourdes). Ingressos: R$ 22 (inteira) e R$ 11 (meia).

MAIS SOBRE PENSAR