Livro de Jorge Caldeira traz reflexões sobre a história do Brasil

Em 'Nem céu nem inferno', ensaios do autor contem com detalhes saborosos aliados à visão analítica mais global

por Eduardo Murta 08/04/2016 14:34
Estão ali o papel determinante do Estado para privilegiar os amigos da Corte e aniquilar desafetos e o dedo venenoso dos conservadores travando a roda das transformações a todo momento em que essas se aproximam do viés da justiça ou da humanização

Num tempo em que as informações fast food e os discursos rasos têm se propagado indiscriminadamente, contaminando conceitos, legitimando preconceitos e substituindo o simples pelo simplismo, é hora de pausa. É momento para um respiro longo, um distanciamento estratégico que nos permita enxergar o todo – e fugir do apelo fácil e trôpego de tomar a parte como raiz para encontrar as respostas. Se o assunto então for Brasil, nos vacinemos diante do festival de futilidades que ultimamente ecoa sob o complexo de “vira-latismo”, como se fosse uma dízima periódica. Há, para o bem, autores que nos salvam dessas armadilhas, propondo análises sólidas. Jorge Caldeira, indiscutivelmente, é um deles.

Autor de obras como Mauá: empresário do Império e O banqueiro do sertão, o jornalista, escritor, doutor em ciência política e mestre em sociologia reúne textos publicados ao longo dos últimos 20 anos que ajudam a compreender um país complexo e absurdamente contraditório desde os tempos de colônia. Em Nem céu nem inferno – Ensaios para uma visão renovada da história do Brasil, Caldeira traz 16 artigos divididos em duas partes: a primeira destinada a “Figuras”; a segunda, a “País, Estado e poder”. Seu maior mérito: a capacidade de, ao se apropriar de uma determinada tese, contar estórias para que fique mais fácil a compreensão da história.

Estão lá figuras como o fundidor Clemente Álvares, possivelmente o primeiro industrial do Brasil, e o padre Diogo Antônio Feijó, parlamentar que foi regente do Império e um dos fundadores do Partido Liberal. Ao desnudá-las, Jorge Caldeira vai do todo à parte sem se distanciar das necessárias contextualizações históricas. Mal comparando, é como se fixar num personagem e enredá-lo a uma trama de fundo. E o jogo de poder desde então não passa longe do que nos parece para lá de atual: estão ali o papel determinante do Estado para privilegiar os amigos da Corte e aniquilar desafetos e o dedo venenoso dos conservadores travando a roda das transformações a todo momento em que essas se aproximam do viés da justiça ou da humanização.

Uma das reflexões de Caldeira, presente no ensaio sobre Feijó, vai parecer escrita na manhã de hoje: “O grosso da elite detestava as novas ideias e acumulava poderes suficientes para se furtar ao alcance da lei”. Assim, ideais iluministas eram vistos como suprema heresia. O combate ao tráfico de escravos, estimulado por Feijó, era um deles. Não demorou para que, com a perda de poder no Parlamento, a circulação dos navios negreiros fosse retomada – e em escala crescente a partir da segunda metade dos anos 1830. O autor, em certa medida, aponta para uma síntese sem data vencida sobre a nação no ensaio em que descreve personagens liberais como José Bonifácio: “A questão central de política econômica no Brasil não é socialismo versus capitalismo; é simplesmente Idade Média versus Idade Moderna”.

Um dos tantos méritos de Caldeira é não fugir das polêmicas, a despeito de não se candidatar a polemista caricato, como tantos que temos por aí. Ele abraça teorias caras a um pesquisador e assume o risco de ver narizes se torcerem, especialmente na academia, ainda que o restante da obra não adote o tom de provocar. Eis uma de suas análises, em “Pero Lopes de Sousa e a tradição democrática colonial” (ou “Os intelectuais brasileiros não estamos preparados para a democracia”): “O que sugiro aqui é que o voto e a democracia talvez tenham uma base de valor na história brasileira maior que aquela usualmente avaliada por seus intelectuais.” Mas, peraí, e os tantos períodos de exceção e restrição ao voto? Nesse ponto, Caldeira observa que o Parlamento nacional tem mais tempo de funcionamento regular “como autoridade com o monopólio de legislar” do que o francês. E emenda: “Entre os grandes países do Ocidente, apenas a Inglaterra e os Estados Unidos elegem legisladores com tais poderes há mais tempo que o Brasil”.

A segunda parte de Nem céu nem inferno mantém o grau de consistência, mas certamente perde em desenvoltura. É nos seis capítulos restantes que Caldeira se dedica a análises mais conjunturais, com o ritmo ganhando ar de pasteurização acadêmica, mesmo que mantidas as referências de contextualização histórica. Ainda assim, é uma obra que instiga e cumpre um papel fundamental de, a todo o tempo, fazer com o que o leitor se pergunte o essencial diante de acontecimentos emblemáticos e seus desdobramentos históricos, acionando o gatilho quente do “por quê?”.

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