Arquiteto Carlos M. Teixeira propõe transformação do Bulevar Arrudas

Espaço receberia ciclovias, áreas verdes e passarelas que ligam o norte ao sul da capital

04/03/2016 12:30
Fotos: Carlos M. Teixeira
(foto: Fotos: Carlos M. Teixeira)
Carlos M. Teixeira*

Muito já se falou sobre o descaso histórico para com o Arrudas em Belo Horizonte: o rio foi canalizado e hoje não é mais percebido como um elemento natural. Seu leito foi sucessivamente retificado, canalizado e, por fim, coberto. É um divisor norte-sul, já que há três barreiras paralelas trabalhando juntas: rio, topografia de fundo de vale e a linha do metrô. Sua presença na cidade só é manifesta como obstáculo e problema (enchentes, mau-cheiro, poluição sonora e visual, edifícios abandonados). Poucas são as passarelas de pedestres que unem a margem sul e norte. E sua arquitetura, que poderia tirar partido do único elemento natural presente no Centro, é uma arquitetura de serviço, predominando galpões, postos de gasolina, depósitos e vazios urbanos ociosos.

O prédio da rodoviária, por exemplo. Seu volume modernista, que merece ser valorizado, situa-se num rotor de modais desarticulados. O que antes era uma várzea do rio separando o Centro do Bairro Lagoinha transformou-se num mar de viadutos, num complexo de vias expressas bem típico do urbanismo rodoviarista que infelizmente moldou as cidades brasileiras nas últimas décadas. Com a transferência de suas funções para os bairros, seu novo programa pode se transformar numa oportunidade para iniciarmos uma nova relação entre cidade e rio.

É preciso ir contra aquele urbanismo e privilegiar as áreas verdes, as praças e, principalmente, o resgate da água como potencial requalificador da cidade. Ao norte, a Lagoinha precisa de uma melhor conexão de pedestres com o Centro; de uma transposição que possa aproveitar a passarela existente para então transformá-la numa praça elevada, como se fosse uma extensão do jardim suspenso de Burle-Marx sobre a laje da rodoviária. Esse paisagismo flutuaria sobre aquela barulhenta conjunção de viadutos, provendo sombras ao árido percurso bairro-Centro, revisitando a herança burle-marxista e incorporando uma ciclovia, assim permitindo que a futura malha cicloviária da Avenida Antônio Carlos seja articulada às ciclovias das avenidas Paraná e Santos Dumont.

Passarelas de pedestres poderiam se transformar num verdadeiro instrumento de uma nova identidade do vale: pontes generosas, com programas acoplados e potencial para valorizar um rio para o qual a cidade virou as costas. Há exemplos na arquitetura das cidades que conjugam, alhures, marcos visuais e travessias prazerosas (a Ponte Vecchio, de Florença, a Ponte do Brooklin, de Nova York, a Pont Neuf, de Paris, a Ponte D. Luiz I, no Porto), – mas nossas pontes mais ambiciosas são de uma escala intimidante, para não dizer acachapante: a ponte mais famosa do Brasil é a Rio-Niterói...

Além de uma conexão Centro-Lagoinha mais generosa que a pinguela de pedestres atual, é preciso construir várias outras: uma primeira ligando o circuito da Praça Floriano Peixoto à Praça Duque de Caxias, em Santa Tereza, outra como continuação da Rua Sapucaí e Rua Itambé, no Floresta, até o Parque Municipal, uma outra na Avenida Bernardo Monteiro etc. – todas colaborando para que a infraestrutura urbana se transforme em oportunidades para prover identidade e marcos visuais a esses bairros.  

E sob essas passarelas, não um trânsito de passagem, mas um parque linear ao longo de um canal com seções de diferentes tipos e com novas encostas verdes, quadras, escadarias, jardins verticais e diversos equipamentos para a prática de esportes – todos conformando um futuro Corredor Verde Centro-Leste. Sendo uma das raríssimas regiões planas de BH, esse corredor vai funcionar também como item fundamental da rede de ciclovias que está sendo implantada, definindo uma nova infraestrutura de mobilidade e desempenhando papel importante num urbanismo agora pensado para a experiência daqueles que mais fazem uso da cidade: o pedestre e o usuário de transporte coletivo.

No Centro, o chamado Bulevar Arrudas precisa se transformar num bulevar de fato, com calçadas mais largas, árvores que justifiquem sua alcunha e um tratamento ambiental extenso que irá da Praça da Estação ao Corredor Verde, ou até o final da Avenida dos Andradas. Nessa perspectiva, a Andradas deixa de ser uma via de oito pistas (que só confirma a cidade do automóvel) para se transformar num calçadão capaz de recriar um vale verde Centro-Leste.

A infraestrutura do canal existente deve agora ser vista com um olhar menos funcionalista e mais poético. As centenas de vigas de concreto sobre o Arrudas não estão à espera de novas pistas de rolagem (como o foram no retrógrado Bulevar Arrudas): são vazios expectantes onde estão os melhores futuros da cidade. Já há o Praia da Estação; agora imaginemos a praia sobre o rio: o leito do Arrudas como um vazio urbano à espera de jardins elevados, cinemas ao ar livre, shows musicais, atividades cívicas inusitadas.

Quimeras? Enquanto Belo Horizonte continua cobrindo o Arrudas, outras cidades estão redescobrindo seus rios. Aquelas vigas podem ser ressignificadas como elemento propulsor de novos espaços públicos e de um eixo verde central. E assim, uma cidade de festas e de celebrações poderá reativá-lo: o Arrudas como evento, como um campo ativo capaz de catalisar uma ampla gama de atividades fixas e transitórias, públicas e privadas, lúdicas e de lazer, possibilitando diferentes arranjos e assumindo as mais diversas facetas.

* Arquiteto urbanista formado pela UFMG, autor de Em obras: História do vazio em Belo Horizonte (CosacNaify, 1999),  e O condomínio absoluto (C/Arte, 2009)
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