Em novo romance, Maria Valéria Rezende critica a 'literatura de bar e alcova'

Escritora defende a verdade dos humildes

por Ângela Faria 19/02/2016 09:01
“Prêmio Jabuti de ficção do ano sai para freira santista.” Foi dessa maneira – no clima “freira derrota medalhões” – que o Brasil tomou conhecimento, no final de 2015, de que a paulista Maria Valéria Rezende havia conquistado a premiação concedida pela Câmara Brasileira do Livro, deixando para trás os consagrados Chico Buarque de Holanda, Cristovão Tezza e Luiz Ruffato. Aliás, ela venceu em duas categorias: romance e obra do ano.

“O mais importante de ganhar o Jabuti é porque sou mulher”, avisa Maria Valéria, que amanhã virá a Belo Horizonte lançar seu novo romance, Outros cantos. Fazendo troça dos clichês que a cercam, comenta que religiosas como ela penam para se livrar da pecha de “bobocas trancadas no convento”. “Acham que sou aquela burralda que não arranjou noivo”, ironiza. A idade – 73 anos – é outro chavão. Realmente. Não se costuma noticiar que Chico Buarque, “autor de 71 anos”, concorreu ao Jabuti...

Dezesseis livros lançados e traduzida na Espanha, França e Portugal, Maria Valéria Rezende está entre as autoras mais originais do país. Construiu sua carreira na contramão do “umbiguismo” e da “literatura de bar e alcova” (palavras dela), cujos personagens urbanoides se afundam em neuras e frustrações.

ALICE
Maria Valéria dá voz à mulher brasileira. Em Quarenta dias, que lhe deu os prêmios Jabuti, a professora aposentada Alice, viúva de um desaparecido político, sai pelas ruas de Porto Alegre atrás de um rapaz que sumiu, dorme na rodoviária e vive no meio dos mendigos até compreender por que as pessoas abandonam tudo. Por 15 dias, a escritora perambulou pela capital gaúcha, pernoitou em calçadas, na rodoviária e no aeroporto.

Outros cantos se passa dentro de um prosaico ônibus. Alfabetizadora do Mobral, a protagonista Maria volta ao vilarejo do sertão nordestino onde morou durante a ditadura militar. O presente se embaralha com as lembranças de 40 anos atrás – o convívio com a gente cuja reza fazia chover em 19 de março, o milagroso Dia de São José; a comida pouca, compartilhada no vilarejo de Olhos d’Água. “O sertão não é mais o mesmo, a tralha consumista invadiu aquele mundo que foi belo, apesar de muito duro”, constata a escritora.

Assim como sua personagem, Maria Valéria dedicou a vida a educar. Adolescente, ensinava estivadores de Santos, sua cidade natal, a ler. Depois, ajudou a criar a Juventude Estudantil Católica (JEC), disseminando a pedagogia de Paulo Freire por favelas, periferias e vilarejos do Nordeste e de países do Terceiro Mundo. Exilada, estudou literatura na França. Divulgou o método Paulo Freire na Argélia, México e Timor-Leste. Conheceu Fidel Castro e Gabriel García Márquez. Nos anos de chumbo, levou para o exterior, no fundo da mala, os originais de Cartas da prisão, livro em que Frei Betto descreve os porões da repressão. Em suas oficinas de leitura, usou o rap de Sabotage e do Racionais MCs e folhetos de cordel. Desde os anos 1980, mora em João Pessoa, na Paraíba, onde divide casa com freiras idosas.

Nem Fidel nem Cem anos de solidão. Maria Valéria diz que se inspira, mesmo, é nas conversas com o menino de rua lavador de carros, com as prostitutas com quem cruzava ao ir para o trabalho, em São Paulo, e com a faxineira nordestina a quem fez companhia num hospital, por dias a fio. Dá voz aos invisíveis – universo que pouco tem interessado a autores brasileiros ultimamente, segundo ela. Recentemente, reescreveu o livro de estreia, Vasto mundo (2001), cujos contos falam da gente humilde do Brasil. No primeiro romance, O voo da guará vermelha (2005), está Irene, nordestina que se prostitui em São Paulo.

“O que mais aprendi com eles foi a força da vida. O pobre vive de teimoso, acredita na vida, apesar de sacrifícios brutais. A resiliência popular é impressionante, quem não tem nada é que divide com o outro”, diz. Para Maria Valéria, ali estão os evangelhos – de forma crua. “O povo simples – que não estudou teologia, graças a Deus – tem a compreensão fundamental”, defende.

Durante a ditadura militar, enquanto esquerdistas eram presos, exilados ou dizimados, continuaram na ativa os cidadãos voltados para a educação popular (como Maria, de Outros cantos), cristãos vinculados a pastorais e comunidades de base, militantes de oposições sindicais, associações de bairro e movimentos pró-transporte e contra a carestia. Nos anos 1980, multidões tomaram as ruas para defender as Diretas, já. Aquela gente, pondera Maria Valéria, “não brotou como cogumelo”. Fez-se política no Brasil amordaçado pelos generais. “Muitos hibernaram, foram semeando devagarinho”, esclarece.

IRMÃ DOROTHY À margem de comissões da verdade, sem “status” de exilado ou direito a indenização, muitos cidadãos escreveram a história do Brasil em silêncio. “Eles só apareceram ao ser assassinados, como foi o caso de minha amiga, a irmã Dorothy”, diz Maria Valéria, referindo-se à religiosa norte-americana Dorothy Stang, executada no Pará, em 2005, por apoiar a luta pela reforma agrária. Até agora, nem a literatura nem as ciências sociais souberam valorizar esse capítulo da história do Brasil, lamenta. Por isso, ela vai lançar um livro sobre a atuação das freiras e de educadores populares. Desta vez, não será obra de ficção.

A escritora tira sua matéria-prima da própria vida. As andanças de ônibus pelo Brasil e pelos EUA – conta ter cruzado a América de Nova York a San Diego “na Itapemirim de lá, bem pior do que a daqui” –, a experiência no México e na Argélia, e as décadas morando em vilarejos nordestinos estão em suas histórias, mas ela se recusa a escrever memórias. Quando muito, admite fazer bioficção. “Quero ter o direito de mentir à vontade”, diverte-se.

Nascida em família de intelectuais (é sobrinha-neta do poeta e contista Vicente de Carvalho; Pagu frequentava a casa de sua avó, em Santos), ela tomou gosto pela literatura ainda criança. Inclusive, numa varanda no Bairro de Lourdes, na BH da década de 1940. Lá morava seu avô, Elpídio Lemos de Vasconcellos. Fotógrafo nascido em Passos, ele registrou cenas da jovem BH. Suas imagens compõem o acervo do Arquivo Público Mineiro.

“Para nós, leitura não era lazer individual, mas uma atividade familiar”, conta Maria Valéria. Elpídio recitava Castro Alves e Gonçalves Dias para as crianças. Depois de cada jantar, o avô lia o capítulo de um livro para os netos. O homem era do ramo: na juventude, trabalhou como “intervaleiro” em salas que exibiam filmes mudos no Rio de Janeiro. Enquanto rolos eram trocados, entretinha a plateia com versos. “Sei de cor muitos versos de Navio negreiro. Aquilo ficou no ouvido”, relembra Maria Valéria, orgulhosa de falar uai. “Minas é o meu segundo lar”, conclui.

Outros cantos

• De Maria Valéria Rezende
• Alfaguara
• 146 páginas
• R$ 34,90

Lançamento sábado (20/02), às 11h, na Livraria Scriptum. Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi.

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