Livro de antropólogo francês faz uma etnografia dos motéis brasileiros

Motel como local destinado ao sexo é uma concepção tipicamente brasileira, segundo antropólogo francês Jérôme Souty

por Nahima Maciel 12/02/2016 13:00
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Brasília – O motel como local destinado ao sexo é uma concepção tipicamente brasileira. Esse detalhe fisgou a atenção do antropólogo francês Jérôme Souty. Radicado no Rio de Janeiro desde 2004, ele começou a observar e a pesquisar o lugar dessa instituição na sociedade brasileira. O resultado está em Motel Brasil: uma antropologia dos love hotels, recém-publicado, em francês, pela Riveneuve Éditions, e já em processo de tradução para o português.

“No começo, estranhei muito esse lugar”, conta Souty. “Na Europa, o motel não existe, eu não entendia aquilo. Tem esse estranhamento e tem também a parte visual que me interessou bastante, a dimensão dos prédios, as fachadas, o cenário e a decoração interna dos quartos. É muito heteróclito, misturado.”

Fotografias e muitas entrevistas com clientes, empregados e gerentes, assim como a etnografia de alguns estabelecimentos, formaram a base para a pesquisa. Aos poucos, Souty passou a compreender o motel como um lugar central no modo de viver brasileiro: todo mundo vai, independente da idade, desde que maior de 18 anos, e da orientação sexual. “Quase todo mundo já foi uma vez a um motel”, constata o antropólogo.

Ele entendeu também que podia falar da sociedade urbana contemporânea e da sociedade brasileira inteira a partir da reflexão sobre o hábito de frequentar o motel. “É um lugar limiar, é um pouco afastado, transgressivo e tem a questão do mau gosto. Por outro lado, é muito central, todo mundo vai. Achei muito interessante, é um lugar diferente, singular da sociedade contemporânea”, reflete.

ENTREVISTA/Jérôme Souty

Nos Estados Unidos, o motel é um símbolo comum inclusive na cultura. No Brasil, isso não acontece. Por quê?
Também analiso o imaginário do motel nos Estados Unidos e no Brasil e chego à conclusão de que é o oposto. Lá, é uma fonte de inspiração em várias áreas — literatura, filmes, fotografia, pintura. O motel americano não é um lugar tão transgressivo assim. No Brasil, onde realmente é um lugar transgressivo, as belas-artes e o cinema não usaram o motel como fonte de inspiração. Passa mais pela novela, pela canção popular, às vezes. Apenas recentemente começam a surgir filmes que realmente têm cenas de motéis.

A questão da arquitetura é recorrente no livro que o senhor lançou. Por que isso chamou tanto a sua atenção?
A padronização não existe no Brasil. Os quartos são diferentes, muitas vezes temáticos, originais, entre a fantasia e a tentativa de individualizar a decoração, e não tem rede de motéis, como nos Estados Unidos. Em geral, é uma coisa mais familiar, tem uma liberdade de iniciativa, de criação, não é padronizada, impessoal como o motel americano. Mas também simboliza a modernidade no Brasil, a chegada do “american way of life”. É a época em que o Brasil constrói estradas, quase abandona o trem, a classe média cresce muito, tem acesso ao carro e tudo que vai com isso, o consumo de massa, é uma mudança muito forte nos anos 1960. E aparecem os motéis. Tem essa questão do modernismo, do consumo.

O que o motel tem a dizer sobre a sociedade brasileira?

Para muita gente, o motel poderia ser um símbolo de uma sociedade pretensamente liberada, aberta, quente. Seria mais um lugar que reforça esse estereótipo. Mas a gente pode ver outro lado. É um lugar de pudor. O motel tem sucesso porque você pode fazer tudo escondido. Ele não é um porta-bandeira da liberação sexual. Os donos e gerentes não têm um discurso pró-sexo. É um lugar funcional. Não é um projeto ideológico, como podem ser os sex shops feministas, por exemplo.

É algo tipicamente brasileiro?
No começo, considerei quase como um símbolo do país. Mais um símbolo. Na verdade, a América Latina quase inteira tem motéis love-hotéis, mas o imaginário brasileiro é muito forte e, em termos quantitativos, supera os outros países da América Latina. E com um setor econômico forte. O Japão, em particular, é o país dos love-hotéis, tem mais que no Brasil, mas por razões completamente diferentes. É um projeto que tenho: pensar a globalização urbana por meio da difusão dos motéis love-hotéis. Hoje em dia tem na Ásia, Coreia do Sul, Taiwan, Nova Zelândia e até Austrália, esse modelo globalizado está se espalhando. Não sei se é bom ou ruim, tenho uma visão crítica, mas não sou nem contra nem a favor.

Você também analisa a presença do motel pela perspectiva do consumo. Como é isso?
O motel pode ser visto como o último lugar da intimidade transformado em produto, em uma commodity. Até que ponto o capitalismo está inserido até na zona mais íntima, que é a das relações amorosas, sexuais, porque ele está oferecendo produtos em uma situação que deveria fugir do controle. Será que o motel é um lugar em que tudo é determinado? Uma maneira de condicionar a sexualidade? Os aparelhos também, os espelhos, os objetos à venda, os sex-toys. Questiono muito isso no sentido de ser uma forma de condicionar a sexualidade em direção ao consumo, ou de a encapsular em uma dimensão técnica. Ainda tem espaço para a imaginação, a fantasia, a capacidade de inventar essa dominação do consumo? Acho que as pessoas ainda têm a capacidade de criar os próprios rituais e usar os objetos de maneira diferenciada. É uma discussão aberta. O motel pode ser visto como o último reduto da chegada do mercado?

A questão do gênero tem relevância na sua análise?

Tentei pensar sobre ideia que se tem do Brasil como um país aberto à sexualidade, à liberalidade. E cheguei a desconstruir um pouco esse esquema. Desde o relato dos colonizadores passando pela literatura de viagem até a sociologia, muitos trabalhos têm essa visão do país como paraíso sexual. Por outro lado, completamente oposto a isso, a sociedade brasileira é ainda muito conservadora, paternalista, machista, tem um duplo padrão muito forte na questão de gênero. O masculino e o feminino são, aparentemente, separados de maneira rígida. Pelo menos em comparação à Europa. Tentei pensar isso em relação ao motel e me perguntei: será que é um espaço de duplo padrão? Com uma grande tolerância para a infidelidade masculina e uma repressão da sexualidade feminina? Será que o motel é um lugar onde isso se repete ou se amplia?


E sua pesquisa quanto à revitalização do porto do Rio de Janeiro, o que é?
Morando no Rio, me apaixonei pela antiga região do porto, que tem um patrimônio de cultura afro-brasileira, ou pelo menos teve, no passado, muito forte. Essa região é alvo de uma gigantesca operação urbana, se inspirando do modelo de revitalização de Barcelona, entre outros. Resultou em uma especulação danada, uma gentrificação, a criação de novos ícones arquitetônicos, como agora o museu do MAR, o Museu do Amanhã. Estudo essas dinâmicas, como o passado afro e o patrimônio da região estão sendo reconfigurados e às vezes instrumentalizados pelo poder público. É para desenvolver o turismo e o consumo cultural, mas tenho mais interesses em ações que vêm de baixo para cima, e essa revitalização é de cima para baixo.

Olhar de Verger

Foi Pierre Verger quem trouxe Jérôme Souty ao Brasil. Ou melhor, o olhar de Verger sobre o país. E, consequentemente, a pessoa do fotógrafo. Souty era estudante de antropologia quando conheceu Verger em Paris, no início da década de 1990. “Ele tinha 93 anos, eu tinha 20 e poucos. Fiquei apaixonado pela vida e pelo itinerário dele”, lembra o antropólogo, que desembarcou em Salvador pouco tempo depois para dar início a uma pesquisa sobre a vida e a obra do fotógrafo.

O primeiro contato com o Brasil puxou um segundo e, quando viu, Souty estava completamente envolvido com o país, especialmente com a Bahia e o universo do candomblé e da cultura afro, tão caros a Verger. A pesquisa resultou no livro Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático, publicado na França em 2007.

Motel Brasil. Une anthropologie des love hôtels (em francês)

• De Jerome Souty
• Riveneuve
• 373 páginas
• 24 euros

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