Historiador aponta que Belo Horizonte nunca deixou de viver o carnaval

Marcos Maia destaca os diferentes aspectos e interações simbólicas deste ritual

05/02/2016 12:31
Marcos Maia*

Acervo Museu Histórico AbÍlio Barreto/Divulgação
Em 1958, o Leão da Lagoinha percorre o bairro com irreverência: tradição de homens se vestirem de mulher (foto: Acervo Museu Histórico AbÍlio Barreto/Divulgação)
Quando se pensa a história do carnaval de Belo Horizonte, e da maioria das cidades brasileiras, é necessário ter em mente a pluralidade da folia, dos vários carnavais que ocorrem na mesma cidade. Em cada uma, há diferentes lugares e festas: brincam blocos de rua, escolas de samba, blocos caricatos e, no passado, brincavam grandes sociedades, zé-pereiras, ranchos e cordões. Observar a multiplicidade de vozes e imagens aponta para as muitas relações tecidas nesses carnavais, seja resgatando a análises de fontes históricas ou refletindo sobre o carnaval atual.

A memória é um ponto central para se estabelecerem as relações entre os vários carnavais ao longo das décadas. No entanto, ela está sempre acompanhada pelo esquecimento. A memória segue seu rumo e, em dado momento, é preservada, de alguma maneira, por meio de registros em diversos suportes, como manuscritos, jornais, fotos, filmes e livros. Isso é concreto, sobretudo, no caso dos carnavais vinculados à elite social ou que sirvam ao interesse desse setor. Os carnavais populares das escolas de samba, ranchos e cordões do passado tinham na tradição oral, cantos e ritmos a salvaguarda de sua memória. Por outro lado, sabe-se que as relações e conflitos entre os tipos de agremiações e os lugares sociais diferenciados – como os carnavais da elite, da classe média e das escolas de samba – também podem resultar em esquecimentos, apagamentos de rastros e ausência de registros.

Neste carnaval de 2016, boa parte dos belo-horizontinos pode estar vivendo uma espécie de “persistência da impressão originária”, como escreve o filósofo Paul Ricoeur em seu A memória, a história, o esquecimento. O significado simbólico da história do carnaval da cidade – mesmo que guardado nos arquivos, nas memórias de alguns e em trabalhos acadêmicos –, atua como um dos elementos constitutivos da memória coletiva que respalda a volta dos blocos de rua vivenciada nos últimos anos em Belo Horizonte. Esse significado simbólico é carregado de vivências e processos concretos na história das festas carnavalescas na cidade.

Em dissertação, o pesquisador Hilário Figueiredo Pereira destaca a variação de sentido do carnaval ao longo das primeiras décadas da festa na nova capital mineira. “Os carnavais de Belo Horizonte revelaram-se (e ainda se revelam) como fenômenos sociais dotados de múltiplas mudanças, reconfigurações, variabilidades, permanências e alternâncias”, analisa. Em relação à memória e ao esquecimento, dois exemplos de reconfigurações e permanências nas chamadas festas de Momo podem ser destacados: o momento das chamadas grandes sociedades e a presença do espírito e da estética barroca no nosso carnaval.

As grande sociedades, ou clubes como eram aqui chamados, foram os primeiros tipos de organização a desfilar no carnaval de Belo Horizonte – como mostram os registros históricos. Em sua maioria, congregavam comerciantes, profissionais liberais, jornalistas, banqueiros e fazendeiros. Surgiram em 1855, no Rio de Janeiro, por iniciativa do escritor José de Alencar e marcaram a memória do carnaval com seus imponentes carros alegóricos e de crítica, além de ter atividades sociais no decorrer do ano.

Menos de dois anos depois de sua fundação, a capital recém-inaugurada já tinha em seu carnaval a sociedade Diabos de Luneta, que desfilou com 14 carros alegóricos nas imediações das ruas Guajajaras, Bahia, e Avenida Afonso Penna. Era o ano de 1899. Em 1904, é fundado o clube dos Matakins, que perdurou até 1917, voltando na década de 1930. O Clube dos Matakins teve como sócio o historiador Abílio Barreto, que, inclusive, fez um discurso na reabertura da nova sede da agremiação no ano de 1936, onde declarou que “esses claros e vibrantes toques de clarins, esse rufar atroante e cadenciado de zabumbas e tambores que ouvimos há pouco pelas ruas da grande capital, fazendo fremir de entusiasmo o horizontino de hoje, têm a mesma força magnetica, o mesmo poder de exaltação daqueles sons que ouvi nos carnavais de 1904 e 1917 (referência ao primeiro período dos Matakins) e, por isso, diluiram-me n’alma infinita saudade...”

É tentador imaginar a noite deste discurso que citava as “zabumbas e tambores que ouvimos há pouco pelas ruas da grande capital”. É possível imaginar Abílio Barreto nas dependências da nova sede dos Matakins, pouco antes do seu discurso, conversando e comentando com senhores da elite “horizontina” sobre a inevitável e sedutora percussão que emoldurava com seu som, lá fora, a reinauguração do clube. Era, ainda, o tempo dos populares ranchos e cordões carnavalescos, já que a primeira escola de samba viria, como novidade, apenas no ano seguinte – a Escola de Samba Pedreira Unida, da favela Pedreira Prado Lopes. Naquela noite de janeiro de 1936, enquanto a elite solenizava no clube, o povo “fremia” nas ruas do Centro da cidade.

E o carnaval de 1936 é repleto de acontecimentos, como a divulgação, no jornal Estado de Minas, na edição de 4 de fevereiro de 1936, do abatimento de 50% no preço do uso das vias férreas do estado que vinham para a capital ou a notícia da filmagem dos cordões providenciada pela Comissão Diretora do Carnaval de 1936. A mesma edição também cita a filmagem dos ranchos, citando “Olympio, o artista que toda cidade conhece”, que realizará o trabalho com um “technico operardor do Rio” (sic). A filmagem começaria por “aspectos da capital, vista de avião”, que seria conseguido pelos “membros da Comissão Diretora” no “Campo de Aviação do Correio Aéreo”. Onde estariam os rastros dessas imagens?

Reconfigurações e permanências do carnaval de Belo Horizonte também são demonstradas nas influências barrocas presentes nas grandes sociedades e escolas de samba. Não é novidade a relação do carnaval com o Barroco. O poeta e estudioso do Barroco mineiro Affonso Ávila, em seu texto “Entre o profano e o sagrado: a ala das baianas”, publicado em 1971 na revista Barroco, revela que nas Minas coloniais havia um “espetáculo de cunho bastante democrático para a época, nele congregando classes e estamentos livres ou servis, poderosos ou carentes, uma procissão como a de Corpus Christi na capital das Minas não dispensava, desde os primórdios da incipiente organização administrativo-social, a presença, por exemplo, de danças e seu suporte musical”. Mais adiante, Ávila infere que “o advento das grandes sociedades (Turunas, Fenianos etc. – sociedades do Rio de Janeiro que vieram inspirar as belo-horizontinas Diabos de Luneta e Matakins) e, depois, das escolas de samba atraiu para seu âmbito de carnaval números, instrumentos e protagonistas antes vinculados comumente, por tradição de emulação lúdica, às imponentes celebrações laico-sacras. E também faz referência às festas do período do Barroco português, onde havia “séquitos compostos por figuras montadas a cavalo”.

No acervo do Museu Histórico Abílio Barreto, há fotografia datada de 1935 que retrata um desfile de uma agremiação não identificada no Centro de Belo Horizonte. Nela, nota-se a presença de dois cavaleiros, um deles negro, participando de um cortejo carnavalesco. Em outra matéria de 1936, o Estado de Minas anunciava a organização do desfile do Clube dos Matakins, que, entre as 15 alas, havia uma “Comissão de Frente de 18 cavaleiros a caráter” e uma “Fanfarra Montada – 25 cavaleiros ricamente trajados à romana”. Assim, mesmo na moderna capital, a tradição colonial se fazia inevitável, resgatando a memória e o imaginário do passado e da herança portuguesa.

O tempo histórico muitas vezes é um labirinto subterrâneo, onde passado e presente se confundem. Assim, como constatamos elementos barrocos na moderna Belo Horizonte, percebemos elementos modernos na Minas colonial. As surpresas encontradas na história do carnaval também revelam os conflitos sociais do período colonial e que permanecem, em certa medida, até os dias de hoje.

Segundo João Antônio de Paula, em seu livro Raízes da modernidade em Minas Gerais, a modernidade gestada no estado do século 18 era “incompleta e bloqueada”. “Aqui se assistirá à atrofia do impulso moderno, que não resultará, como nos países centrais, em democratização dos direitos políticos, em universalização dos direitos sociais, em desenvolvimento material autônomo”, argumenta, acrescentando que, em Minas, os “sistemas modernos” serviram “à reprodução de privilégios, à exclusão e à marginalização social e econômica, e à interdição de direitos políticos”.

A exclusão e a marginalização social, econômica e cultural persistiram com a fundação da Belo Horizonte moderna e nos acompanha até hoje. As festas populares sempre tiveram seus rastros históricos apagados pela elite, ou no mínimo secundarizados nos relatos e registros de festas como o carnaval.

Mesmo em declarações mais recentes, que reconhecem a tradição do carnaval da cidade, nota-se o desconhecimento da continuidade, mesmo que de certa forma marginalizada, dos desfiles de escolas de samba e blocos caricatos na Afonso Pena e na Via 240. Ora, por que não se considera legítimo e representativo um carnaval, mesmo que reduzido, feito por alguns milhares de pessoas na Via 240, na Avenida dos Andradas ou na Avenida Afonso Pena? Por que o fato de ter como protagonistas setores pobres da sociedade devem ser vistos como menos representativos? Por que, se não é realizada nas Regiões Leste ou Centro-Sul, a festa não merece ser vista e pensada como carnaval?

Um olhar restrito e enviesado reflete a limitação na capacidade de observação da cidade. Esse olhar reforça a aceitação de divisões territoriais, diferenças de habitação, serviços, direitos e visibilidade. É importante, portanto, que menos do que ver o atual carnaval apenas com surpresa, é preciso vê-lo com seu potencial de contradições e conflitos.

Pode-se inferir que o esquecimento das festas populares – manifestações como o carnaval e o samba produzidos e vividos nos morros e periferias da cidade – foi tal que atingiu o presente, o próprio território urbano em que atualmente se vive na capital. Ou seja, há o esquecimento apagado no tempo passado e o esquecimento vivenciado nos dias de hoje, um esquecimento territorial. Esse “apagamento” bloqueia a percepção de outros espaços no presente, dos espaços que não são do convívio de classe de quem observa, revelando fronteiras quase intransponíveis, evidenciando o limiar entre o asfalto e o morro e a diferença das classes sociais. Mesmo quando se observam outros grupos e se estabelece uma aproximação solidária, o desconhecimento sobre a história de determinada comunidade torna-se evidente: fica oculto seu passado, os afetos vividos, as festas, as inquietações, os sambas, as tristezas e seus carnavais já vividos. É “esquecimento por apagamento de rastros”, como diz Paul Ricoeur, que não deixa, inclusive, nos dias atuais, os rastros para outra rua, para outro bairro, para outro convívio, outra festa.

O fortalecimento e refundação do carnaval de blocos de rua em Belo Horizonte se dá, majoritariamente, em setores da classe média. No entanto, o carnaval enquanto calendário e disputa de território urbano e simbólico manteve-se, em alguma medida, por causa daqueles outros que persistiram na sua festa orbitada em torno das escolas de samba e blocos caricatos. Esses sempre “desceram” para a avenida – a não ser nos períodos de participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e em alguns anos da década de 1990. Entretanto, essas agremiações não são percebidas pela cidade visível, ou quando o são, revelam-se uma impressão depreciativa.

Ainda há um ponto cego que atinge boa parte das memórias pessoais (e coletivas), inclusive daquelas que pesquisam ou vivem o carnaval de rua atual. Não que os brincantes dos atuais blocos de rua tenham que, por obrigação, conhecer o outro lado da cidade e sua história. Mas o fato de desconhecerem, como a maioria da cidade, a densidade cultural e histórica da festa da periferia ou do morro, pode fazer pensar que, por direito divino de Baco, apenas o carnaval dos blocos de rua deve ser o centro das atenções da sociedade e do poder público. A memória e o esquecimento são fenômenos reais que participam e atuam nos conflitos entre os diferentes setores culturais e sociais.

Talvez o que una os diversos carnavais dispersos no tempo e no espaço, mesmo que em gradações diferentes quanto ao desejo de liberdade, seja a busca do que Mikhail Bakhtin chamou de realismo grotesco presente no carnaval da Idade Média. Nele, o princípio social e corporal participam de uma festa utópica em uma totalidade viva e indivisível, que “é percebida como universal e popular e como tal opõe-se a toda separação de raízes materiais e corporais do mundo e a todo isolamento e confinamento em si mesmo”. A busca desse espírito de liberdade é o que garante a revitalização dos carnavais e, hoje, quem cumpre esse papel é a maioria dos blocos de rua do recente carnaval belo-horizontino e de outras cidades, como o Rio de Janeiro e São Paulo, além de algumas escolas de samba como a Cidade Jardim, de Belo Horizonte, que tem sido um lugar de encontro entre os vários carnavais da cidade.

Que pelo menos alguns dos rastros apagados das memórias individuais e coletivas da cidade sejam recuperados e contribuam, minimamente, para a continuidade de um carnaval que valorize a democratização da cidade e a gratuidade da festa, desafie e aja contra regras burocráticas e autoritárias do poder público e, mais que isso, proporcionem um espaço para a interação entre os vários coletivos e a cidade, subvertendo a lógica imposta aos lugares e corpos.

* Marcos Maia é historiador, foi curador da exposição Narrativas do samba e do carnaval de Belo Horizonte (Museu Histórico Abílio Barreto, 2011), produtor e pesquisador do documentário Roda e supervisor histórico do site Mapa da Folia.

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