Maestro Marcelo Ramos escreve sobre o compositor, regente e pesquisador Pierre Boulez

Morto em 5 de janeiro, Boulez foi homem contido que defendeu com afinco a música contemporânea

por Marcelo Ramos* 22/01/2016 12:30
Rolf HAID/dpa/afp - 17/10/08
Maestro Pierre Boulez rege a SWR Symphony Orchestra na abertura de festival de música de Donaueschingen, no Sul da Alemanha. Trabalho como maestro lhe permitiu contato com compositores contemporâneos (foto: Rolf HAID/dpa/afp - 17/10/08)

Reservado, racional, provocador e bem humorado – essas são palavras já utilizadas para descrever Pierre Boulez, cuja importância para o mundo da arte pode ser analisada sob vários aspectos. Boulez atuou notadamente em três áreas: regência, composição e estética musical, além de ter estabelecido fortes laços políticos que o ajudaram a desenvolver projetos importantes, sobretudo na França. Prova disso foi a criação do Instituto de Pesquisa e Coordenação de Música e Acústica (Ircam) pelo ex-presidente francês Georges Pompidou, em 1970, e a nomeação de Boulez como seu diretor-geral, cargo que ocupou até 1992.

Do ponto de vista da regência, o que mais me impressiona em Boulez é a economia de gestos e de esforço, de uma forma geral. Tive chance de assistir a duas semanas de seus ensaios e concertos com a Orquestra de Cleveland na época de meu mestrado, e pude atestar como o maestro saía do pódio sem derramar uma gota de suor sequer, após três horas de intenso trabalho. No outro extremo dessa linha, alguns maestros precisam trocar de camisa durante o intervalo de ensaios desse tipo. São antológicas as suas gravações da Sagração da primavera, de Stravinsky, com a Orquestra de Cleveland, e do Anel do nibelungo, de Wagner, no Festival de Bayreuth, em 1976, com direção de Patrice Chéreau, ambas disponíveis no YouTube. Dirigiu ainda a primeira versão completa da ópera Lulu, de Alban Berg, na ópera de Paris, e a ópera From de house of the dead, do tcheco Leoš Janácek. Em seu repertório destacam-se ainda obras de Alban Berg, Claude Debussy, Gustav Mahler, Arnold Schöenberg, Igor Stravinsky, Béla Bartók, Anton Webern e Edgard Varèse.

O que contribuiu para a bandeira de promover a música contemporânea foi justamente sua atuação como regente, que lhe permitiu frequentar meios a que seus colegas compositores não tinham acesso. Dessa forma, quando foi diretor artístico e regente titular da Filarmônica de Nova York (1971-1977), programou diversas obras de compositores contemporâneos numa escala infinitamente superior à média de outras orquestras. Isso lhe custou pesadas críticas do público e dos próprios músicos, ilustrando um pouco uma de suas principais características – defender um ideal independente da vontade das massas e da necessidade de agradar um determinado segmento, ainda que este seja maioria.

Outras três orquestras desfrutaram de sua presença constante: Sinfônica de Chicago (em que foi principal maestro convidado), Orquestra de Cleveland (em que foi consultor artístico entre 1970 e 1972), e Orquestra de Paris. Na capital francesa, recentemente esteve envolvido na idealização de uma nova sala de concertos, a Philarmonie, um marco arquitetônico e cultural na Europa e uma das melhores do mundo no gênero.

Como compositor – que tinha fascínio por matemática –, explorou as principais tendências musicais do século 20, com exceção do nacionalismo: dodecafonismo, serialismo, minimalismo e música eletroacústica. Adotou em várias composições o uso da improvisação e da forma livre, privilegiando formações pouco usuais, incluindo o piano, violão, vibrafone, xilofone, marimba, a voz humana, harpa, celesta e efeitos eletrônicos. Boulez também buscava a pureza do timbre, explorando inúmeros efeitos e combinações nos instrumentos de corda, sopro e percussão.

Sua música não é definitivamente destinada ao grande público, que ainda hoje tem dificuldade em assimilar compositores centenários como Stravinsky ou Schöenberg. Adotando um estilo “sem melodia”, Boulez estava preocupado com o futuro e com a continuidade de uma arte que precisa olhar para frente, da mesma forma que seus contemporâneos como Olivier Messiaen (também seu professor), Iánnis Xenákis, Luciano Berio, György Ligeti e Arthur Honneger, entre outros.

Viveu plenamente até os 90 anos, convivendo com a elite da arte e da filosofia do século 20, e deixou textos polêmicos (sobretudo Stocktakings from an apprenticeship, Orientations: Collected writings, e Boulez on music today), além de uma obra audiovisual de suma importância para músicos e compositores. Boulez nos abandona numa época em que outros dois gigantes da regência também se foram: o americano Lorin Maazel, em 2014, e o alemão Kurt Masur, em 2015.

Obras de destaque

. Structures, livres I et II (dois pianos, 1952 e 1961)

. Le marteau sans maitre (contralto, flauta contralto, violão, vibrafone, xilofone, percussão e viola, 1953–1955)

. Pli selon pli (soprano e orchestra, 1957–1989)

. Rituel in memoriam Bruno Maderna (orquestra, 1974–1975)

. Répons (dois pianos, harpa, vibrafone, glockenspiel, cimbalom, orquestra e eletrônicos, 1980–1984)

Prêmios mais importantes


. 26 prêmios Grammy

. Comendador da Ordem das Artes e Letras (França)

. Prêmio Glenn Gould (Canadá, 2002)

. Prêmio Robert Schumann para Poesia e Música (Academia de Ciências e Literatura, Mainz, 2012)


*Marcelo Ramos é maestro e professor da Escola de Música da UFMG

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