Uma trágica coincidência marca o lançamento, no Brasil, do romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, do escritor português Gonçalo M.
A diferença fundamental é que, em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, a protagonista é encontrada não por um fanático do Estado Islâmico, mas por um fugitivo sem passado – e com poucas chances de futuro. Marius topa com a figura de Hanna portando uma cartolina com instruções para si mesma numa esquina de uma cidade europeia. É uma espécie de Kaspar Hauser em versão feminina, um ser de quem foi sequestrado o passado.
“É claro que a história se repete, como mostra a recente revelação dos crimes do Estado Islâmico contra as crianças com síndrome de Down”, comenta Tavares, concluindo que, “o fundamentalismo sempre começa ou acaba com a questão de eliminar o diferente”.
Tavares sente que o século 21, de forma figurativa, é uma jangada à deriva, mais ou menos como os personagens de seu livro, aos quais resta apenas a solidariedade na desgraça. A busca do pai pela menina, ele admite, pode, então, assumir uma dimensão alegórica.
“Não se sabe se ela conhece mesmo o pai, mas essa busca é um tema clássico desde Édipo”, argumenta, selecionando um personagem histórico, Stalin, para classificar como trágico esse desamparo coletivo que faz com que as pessoas identifiquem num tirano a figura do paizinho da nação.
Ao se aproximar de Hanna quando todos passam por ela sem lhe dar atenção, o fugitivo Marius o faz com outro objetivo, o de ajudar a menina a encontrar o pai, esforçando-se para se comunicar com aquela garota que, segundo seu criador, “não está perdida no espaço, mas no século, em alguma esquina entre os anos 1950 e 1970”. Ou seja, trata-se de um romance sem tempo definido, mas certamente ambientado após o Holocausto. O hotel onde se refugiam Hanna e Marius, cujos proprietários são judeus, ajuda a localizar melhor essa data: todos os quartos têm nome de campos de concentração ou de extermínio e, trágica ironia, o fugitivo, após tatear no corredor escuro, sente-se aliviado ao ver a placa do seu em que está escrito Auschwitz. Será possível ver a luz no fim do túnel com nome tão tenebroso na memória?
Tavares convida o leitor a tratar dessa e outras questões, envolvendo-se no mistério da fuga de Marius, que por vezes assume o papel de narrador, ainda que sem muito a dizer. A empatia surge naturalmente diante de seres afásicos perdidos no século. Para Tavares, alimentar esse mistério não era sua intenção. Antes, como um personagem em movimento, em fuga, Marius é uma figura enigmática, tanto como Hanna. O autor indica que a questão do afeto, de estender a mão ao outro, é o que importa, remetendo ao problema dos refugiados, das migrações, que já marca o século 21. (Estadão Conteúdo)
UMA MENINA ESTÁ PERDIDA NO
SEU SÉCULO À PROCURA DO PAI
• De Gonçalo M. Tavares
• Companhia das Letras
• 240 páginas
• R$ 39,90 .