Ponto de fuga

NÓS, O DESOCIDENTADO


Saiamos
de aldeia
em aldeia
à procura do desocidentado.

Vocês que nos seguem
peçamos que fiquem conosco.

Alguns ficavam. Alguns ficaram.

A expedição se reinventa a cada passada.
Desviemo-nos dos silvos das balas
Evitemos o zunir de flechas

Sigamos o doce chamado que parte
da floresta, misturando os tempos.

Seguíamos seguiremos em direção
à República Musa paradisíaca.

O sol que nasce ensina
O sol que se põe ensina

O corpo da escrita e o corpo da terra
conversam entre si e nos incluem
e se multiplicam


Soubéssemos saberemos
talvez tateando
reconhecê-lo
quando o encontrarmos

E dentro de seus olhos
os mais limpos olhos os mais escuros
(tanta coisa se passa no escuro)
veremos a mesma estrela esfaimada
que viaja nos nossos
e por vezes nos aturde.



ESGOTADOS



Meus livros estão esgotados.


Meu melhor amigo está esgotado.
Meus tios e tias, meus primos e avós estão esgotados.
Meu cachorro está esgotado.
Eu mesmo estou esgotado.
Sentado no sofá com as 4 patas de fora e estrias à mostra
O amor está definitivamente esgotado.
A canção?
Diz que tudo vai dar certo.
Mas as canções, assim como os clichês, estão esgotadas.

Decido então pegar meus livros, meu cachorro, minha família, o amor e meu melhor amigo
e partir para o Mundo Novo.
Chegamos em festa e sugerem o show mais à noite.
Pegamos a Via Expressa
e topamos com dezenas de fãs desolados famintos
do lado de fora no portão principal.
Todos esperam, presumo, com ingressos esgotados.
Na volta, as placas e setas indicam que devemos nos apressar
pois as mesas estão fartas
e os caminhos definitivamente esgotados.



A MÁQUINA DE EXISTIR



Se você chegou até aqui
e quer continuar
às próprias custas,
cuidado: contém spoilers:

a luz vai apagar
vai doer
vai arder

nas retas,
vai amar as curvas

nas curvas,
desejar as retas

vai ter seu dia
no deserto
no vale de ossos secos

Vai sentir
o calor do pai e
o calor da mãe
mesmo quando não há
calor de pai
e calor de mãe

vai pensar
que tudo é só ilusão

mas em algum momento
no começo,
no meio
ou no fim

a luz vai brilhar
como um vagalume
que só acende

e iluminar

a família
os amigos
nós dois
os meus e os seus desconhecidos

soltos no mundo

brincando nos campos do Real


MAIS-VALIA



Esses homens de pé,
ao longo de geleiras indestrutíveis,
repetem sem cessar suas certezas
também indestrutíveis.

O carro vale mais que a sinfonia
A faca vale mais que a poesia
As ações na bolsa valem mais que as nuvens
O míssil vale mais que o cacho de uva.

E se o compositor diz que
a coisa mais certa de todas as coisas
não vale um caminho sob o sol,
eles não têm a menor ideia
do que o compositor está falando.

E seguem solenes, solenes sob a luz severa,
escolhendo o carro, a faca, a bolsa e o míssil.

Mas eu escolho ser a chuva
que lentamente dissolve,
fibra por fibra,
as geleiras seculares.


Fabrício Marques
Fabrício Marques é jornalista, escritor e doutor em literatura comparada. Autor de Sebastião Nunes (ensaio, Ed.UFMG, 2008), Dez conversas (entrevistas com poetas contemporâneos, Ed. Gutemberg, 2004), A fera incompletude (poesia, Selo Dobra Literatura, 2011) e Uma cidade se inventa (ensaio-reportagem, Scriptum, 2015)

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