A cidade contra os barões

Amoral liberal lava as mãos para os excluídos. Mas qual solução oferece para que essas pessoas possam compartilhar da vida urbana?

18/12/2015 12:30

Roberto Andrés *

 

Se as cidades são complexas e geram debates controversos, há também em torno delas alguns consensos. Um deles é que não está bom para ninguém. Claro que a cidade é pior para alguns do que para outros, mas fica evidente que a maioria das pessoas se ressente da rotina opressora e das muitas violências: o trânsito, o transporte precário, as periferias maltratadas, a poluição, o cinza do asfalto, o vazio, o calor.

Mesmo os que tiram proveito econômico da tragédia urbana (indústria automobilística, empresas de ônibus, exploradores de serviços públicos, construtoras) vivenciam o trânsito engarrafado e temem pela violência em seus espaços blindados. Ganham muito com a cidade como valor de troca e se dão ao luxo de abrir mão dela como valor de uso. São o 1%.

Os outros 99% parecem buscar, cada vez mais, a cidade como valor de uso. O sonho privatista dos anos 90 quis fazer do espaço urbano mera conexão entre espaços privados. Muitos acreditaram que a felicidade viria com o carro novo, a casa murada, o shopping center, a escola particular. Esse modelo faliu, por negar o outro e cultivar paranoia e tédio. Estar nas cidades só faz sentido como possibilidade de encontro, de vivência da coletividade e dos espaços abertos.

Esse desejo se expressa na retomada das ruas em muitas cidades. Em Belo Horizonte, com o carnaval de rua, a Praia da Estação, o Duelo de MCs, a Gaymada, só para citar alguns. Também com movimentos que reivindicam áreas verdes, como o Parque Jardim América e a Mata do Planalto, a preservação do patrimônio, como o Salve Santa Tereza, o ciclismo seguro e democrático, como o Bike Anjo, BH em Ciclo, etc.

Mas, se a rede de pessoas em torno dos espaços públicos se fortalece, é fato que espaços continuam maltratados, que as políticas públicas continuam a promover cidades ruins, hostis, poluídas, lugares da depressão e da tristeza, mantenedoras da violência e da desigualdade seculares.

Tratamento que garante privilégios para poucos e fomenta um ciclo vicioso prejudicial à coletividade. Proponho-me aqui, num exercício de síntese, a pincelar esse ciclo.

Comecemos pelos carros. No espaço em que dois carros transportam três pessoas, um ônibus transporta 50. Um estudo recente mostra que, no horário de pico, em São Paulo, os automóveis ocupam 78% das ruas, mas transportam 28% dos passageiros. Os ônibus ocupam 8% dos espaços das ruas e transportam 67% dos passageiros.

Embora transportem menos gente, os automóveis produzem nove vezes mais poluição que os ônibus, e 36 vezes mais que o metrô. A poluição do ar mata mais que Aids e dengue no Brasil. Só em São Paulo, são 4 mil mortes por ano. Os acidentes de trânsito matam mais no Brasil do que as armas de fogo. Foram mais de 40 mil mortes no ano de 2014.

O automóvel é um meio ineficiente de mobilidade urbana. Mas é muito mais do que isso. Trata-se de uma epidemia que ceifa dezenas de milhares de vidas por ano no país. O que justifica a continuada isenção de impostos para a indústria automobilística, sem nem mesmo a cobrança de melhorias ambientais? Nada, a não ser o aquecimento da economia para a manutenção do poder no curto prazo, mas baseado num crescimento irresponsável e inviável. A economia estaria aquecida se o governo financiasse fábricas de metrôs, bondes, ônibus elétricos e bicicletas, como apontou o cineasta Michael Moore, em uma carta a Obama na crise de 2008.

Ônibus, assim como metrôs e bondes, transportam muita gente e ocupam pouco espaço. Para serem atrativos, precisam ter oferta abundante, tarifa baixa e alta qualidade. A maneira de fazer essa mágica é pelo subsídio da tarifa. Todas as cidades de que admiramos o transporte coletivo subsidiam as tarifas, muitas em mais de 50%.

Nas cidades brasileiras, o subsídio é praticamente inexistente. As frotas são ruins e as tarifas, altas. O que gera um sistema precário, uma violência contra quem usa. Em Belo Horizonte, há uma debandada em massa do transporte coletivo, apesar do marketing do Move. O que é compreensível, pois temos uma das tarifas mais altas do mundo (trabalha-se em média 20 minutos para pagar uma passagem, contra seis em Barcelona e dois em Buenos Aires), que subiu muito acima da inflação nos últimos dois anos. Como se não bastasse, a oferta de ônibus foi reduzida, aumentando a espera nos pontos.

Ora, quem quer pagar caro para esperar muito e pegar o balaio lotado? Ninguém, claro. O que ocorre é a fuga, dos que podem, para carros e motos, fomentando a tragédia motorizada que vemos todo dia. E quem ganha com isso? Meia dúzia de empresários pouco sérios, para quem, quanto pior o serviço, maior o lucro.

Aí chegamos a viadutos e bulevares. Na ânsia de ampliar espaços para automóveis, aparecem essas aberrações. Que, claro, não funcionam. As novas pistas ficam rapidamente saturadas e os engarrafamentos são empurrados alguns metros para a frente. Não há exemplo de cidade no mundo que tenha melhorado o trânsito aumentando espaços para carros – seria como combater obesidade ampliando o estômago.

Em Belo Horizonte, a maior parte dos recursos de “mobilidade” é investida em obras desse tipo. São bilhões e bilhões nos últimos anos, que poderiam ter financiado o metrô do Barreiro, centenas de ciclovias, etc. Quando um viaduto cai, vê-se que não faz falta alguma. O trânsito flui normal e a vida segue.

Mas o problema não é só a ineficiência. Essas obras geram um grande estrago no tecido urbano. No clássico livro Morte e vida de grandes cidades, Jane Jacobs mostra como a hegemonia dos automóveis causa erosão urbana: gera espaços e cidades inóspitos, desestimulando pedestres e ciclistas. Ir à padaria vira uma tarefa árdua, se você mora ao lado de um viaduto ou do Bulevar Arrudas. O perverso do modelo do automóvel é que ele destrói tudo por onde passa.

Destrói árvores, rios, calçadas, praças e parques. E a cidade precisa desses elementos. No atual contexto de aquecimento, sombra e frescor são qualidades essenciais. Árvores e rios abertos e limpos urgem! Uma medição recente registrou diferença de temperatura de 5 graus entre a Mata do Planalto, na Região Norte de BH, e uma avenida na mesma região. A reabertura de um rio urbano em Seul reduziu a temperatura no entorno em mais de 10%.

Belo Horizonte cobre seu principal curso d’agua e cortou mais de 40 mil árvores nos últimos anos. Pretende privatizar parques (que custam menos de 0,5% do orçamento) e deixa de investir nas áreas verdes demandadas pela população. O descompasso com os interesses reais das pessoas é alarmante.

Descompasso que se intensifica no caso extremo da habitação. De 2008 a 2013, os aluguéis dobraram no país, embora a inflação não tenha chegado a 40%. A falta de regulação foi catastrófica, expulsando muita gente de suas casas. Em Belo Horizonte, são 148 mil famílias sem moradia digna, segundo o Instituto de Pesquisa Aplicada. No ritmo atual da política habitacional do município, quem está no fim da fila aguardará 175 anos para conseguir a casa própria. Por outro lado, um levantamento recente apontava mais de 40 mil imóveis desocupados no Centro de Belo Horizonte.

A moral liberal lava as mãos para os excluídos. Mas qual solução oferece para que essas pessoas possam compartilhar da vida urbana? Alguém em sã consciência imagina a cidade funcionar sem a presença de toda essa gente que atua de maneiras tão diversas? A moral liberal não dá conta da coletividade. E, na verdade, de liberal ela tem pouco. O que se vê é o privilégio de alguns poucos via monopólios e práticas de corrupção do poder público.

Ou encontramos maneiras de viver juntos, compartilhando afeto, respeito e dignidade, ou a cidade carece de sentido. Ou os 99% fazem valer seus direitos e desejos, ou vamos ficar à mercê dos barões. Que já estão planejando o financiamento aos candidatos para as eleições de 2016.


Roberto Andrés é arquiteto-urbanista, professor da UFMG e editor da revista Piseagrama.

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