Pesquisador Samy Lansky acredita que espaço urbano é opressor para as crianças

As cidades contemporâneas, cortadas por avenidas repletas de carros, a violência que acua seus moradores, a existência de pouquíssimas praças, parques e locais de convivência fazem crianças sofrerem com a segregação socioespacial

por Walter Sebastião 18/12/2015 12:31
TÚLIO SANTOS/EM/D.A PRESS
"As crianças são vítimas de uma percepção 'adultocêntrica', que considera as ruas espaços inseguros, inadequados à apropriação infantil" (foto: TÚLIO SANTOS/EM/D.A PRESS)
O arquiteto, urbanista e doutor em educação Samy Lansky, de 53 anos, tem mestrado (Praça Jirimum: cultura infantil no espaço) e doutorado (Na cidade com crianças: uma etnografia espacializada, Melhor Tese em Educação, UFMG, 2012) cujo tema é a relação entre a cidade, a criança e a cultura da criança. O primeiro é uma pesquisa desenvolvida no Barreiro, o segundo, no Santa Lúcia, ambos bairros de Belo Horizonte.

Os trabalhos, inéditos em livro, apresentam enfoque transdisciplinar e foram apresentados em congressos de planejamento urbano, educação, sociologia e antropologia. As pesquisas, conta Lansky, revelaram que o tema tem recebido, nas últimas décadas, atenção por parte de pesquisadores oriundos de diversos campos. O que, analisa, expressa a complexidade e a emergência da compreensão da condição urbana da criança, “um dos grupos que mais sofrem com a segregação socioespacial”.

O interesse de Lansky pela questão, como conta, ocorre por ser de família que foi proprietária de uma das primeiras redes de lojas especializadas em brinquedos de Belo Horizonte. “Vivi nesse universo desde pequeno”, recorda. “Como arquiteto, em meados dos anos 1990, fui convidado a realizar um projeto de parque infantil para um clube e, desde então, não parei mais de trabalhar tendo a criança como foco, pois percebi a riqueza da temática e que poucos arquitetos atuavam nesse campo”, conta Lansky. Praça criada com metodologia participativa, em áreas vulneráveis, valeu ao arquiteto menção honrosa no Prêmio Design do Museu da Casa Brasileira (SP, 2012). Na fonte de muitos problemas, aponta, está uma certa visão em relação à criança (“histórica e que ainda não mudou”) como “ser que não tem voz e opinião” e à infância “como tempo de passagem, e não de vida”.

O arquiteto faz criticas ao urbanismo que, para ele, “de uma forma geral”, desconsidera o fator humano, as pessoas. “Herança de uma visão modernista da arquitetura – em que o ser humano é considerado como um sujeito universal, o ‘homem-tipo’, sem considerar a diversidade sociocultural, seja ela etária, de gênero, socioeconômica etc. A cidade é vista, então, como uma entidade à parte de seus moradores e de suas culturas, é pensada como resultado de forças econômicas e políticas, e a serviço delas, sob uma ótica excludente. As crianças, muitas vezes, são vítimas dessa percepção ‘adultocêntrica’, que considera as ruas espaços inseguros, inadequados à apropriação infantil. Esse é o pensamento urbanista hegemônico, mas é claro que, atualmente, observamos diversas experiências que avançam num outro sentido, mais democrático e generoso”, explica.

Desafio a ser enfrentado, aponta Samy Lansky, é a desigualdade socioeconômica de acesso aos serviços e à garantia dos direitos fundamentais. “Está aí a raiz de diversos outros problemas, tais como a violência urbana e a segregação socioespacial”, defende. “Propostas e experiências para intervir nesse contexto existem, mas poucas chegaram às cidades brasileiras. Inspirados no italiano Cittá dei Bambini e na Cidade Amiga da Criança da Unicef, incluímos o Programa RMBH da Criança no Plano Diretor para a Região Metropolitana de Belo Horizonte, que propõe diversos projetos. Começando pelo investimento na qualificação dos espaços públicos e das calçadas a partir da mobilização da comunidade escolar e da vizinhança com o objetivo de criar condições de atração e de segurança para a circulação das crianças de forma autônoma entre a casa e a escola”, exemplifica

A cidade, garante Lansky, pode ser menos estressante, violenta e desumana. “Se passarmos a compreender que não podemos deixar toda a responsabilidade para o poder público e que tivermos disponibilidade para a convivência com o diferente, o outro. Pequenas ações na escala do bairro, da vizinhança podem, sim, fazer diferença e qualificar os espaços e as relações que ali ocorrem”, afirma. “Ao considerar a cidade como expressão das relações sociais, é preciso ocupar seus espaços para o encontro, a festa, a brincadeira e, assim, pressionar o poder público para investir em sua ampliação e qualificação”, defende.

ENTREVISTA/Samy Lansky

O que se vê quando se observa a cidade quando vista da perspectiva das crianças?
Quando perguntamos às crianças sobre suas propostas para a cidade, invariavelmente respondem que desejam mais espaços e oportunidades para brincar, andar de bicicleta, encontrar os amigos, etc. É uma cidade completamente diferente daquela que estamos construindo nas últimas décadas, em que a prioridade é dada aos espaços de circulação de automóveis, espaços comerciais, megaempreendimentos residenciais e por aí vai. A infância moderna urbana foi aos poucos sendo separada da vida adulta. O surgimento de uma série de espaços produzidos especificamente para crianças (tais como as escolas, creches, parques, museus, etc.) está relacionado ao desenvolvimento da metrópole moderno-industrial, que, progressivamente, define espaços adequados a certas atividades e a determinados tipos de pessoas. E a vida pública (rua) passa a ser relacionada ao homem adulto, e a vida privada (casa), relacionada à mulher e à criança, fenômeno que está na origem da separação entre o universo adulto e o infantil urbano. “Lugar de criança é na escola” (ou em casa)! O que não é fenômeno não é universal. Depende do local, dos grupos sociais que o habitam, do tamanho da cidade. Em ambientes indígenas brasileiros, a criança circula com liberdade pelo universo adulto.

Você diz que há brechas no espaço urbano que são ocupadas pela criança. Pode explicar?

Assumo o termo “brecha” como a espacialização da resistência, lugar onde ocorrem manifestações sociais espontâneas, de encontro e cultura, apesar do Estado e das instituições. Foi possível observar que, apesar da percepção de inadequação da presença infantil nos espaços urbanos, ela ocorre de forma bastante visível especialmente nos horários de entrada e saída das crianças das escolas e nos arredores de bairros populares e favelas. Diversos autores já disseram que, apesar das tentativas de controle, disciplinamento e cerceamento das liberdades, de expressões espontâneas e do corpo nas sociedades contemporâneas, os sujeitos encontram formas próprias de transgredir a ordem vigente e de resistir.

Que posição a criança tem no contexto urbano?

É possível considerar que a criança urbana progressivamente se torna uma das principais vítimas da segregação socioespacial, resultando, nos extremos, em casos de confinamento e/ou controle excessivo para alguns grupos e marginalização para outros. No entanto, a percepção da rua como o lugar do desvio, inseguro, inadaptado às necessidades das crianças corresponde, muitas vezes, a uma concepção europeia não compartilhada pelos grupos populares dos países sul-americanos. Tal percepção pode contribuir com as concepções de infância pobre como inadaptada, marginal, “sem lugar” na sociedade. Mas é preciso lembrar que a criança e sua cultura estão continuamente em desenvolvimento, em mudança e em diálogo com a cultura adulta. Além de toda uma enorme produção cultural que toma a criança como consumidor-foco, é preciso considerar as expressões culturais espontâneas das crianças, tais como os jogos, brincadeiras de rua, desenhos etc. São expressões culturais de um grupo social e de um tempo específico, muitas vezes invisibilizado. Esses registros podem nos ajudar a contar um pouco mais sobre nossa história, nossa sociedade, nosso lugar.

A questão tem faces distintas quando se consideram as diferentes classes sociais?

A ausência da criança nos espaços e de autonomia infantil em relação à mobilidade nos meios urbanos contemporâneos é um fenômeno associado a crianças europeias, norte-americanas e às brasileiras de classe média e alta, moradoras de bairros e condomínios. Por outro lado, em diversos estudos brasileiros, observou-se que o terreno em que a favela se localiza e até mesmo as ruas próximas são explorados pelas crianças, constituindo, também, um território infantil, onde exercem considerável domínio. Obviamente que estou me referindo aos extremos das camadas sociais e existem situações intermediárias e famílias que, mesmo pertencendo a determinado grupo social, têm comportamentos distintos da maioria. Nesse sentido, as crianças pobres são as que mais desfrutam da riqueza, da diversidade urbana, brincam e fazem amigos na rua, mas são também as que mais sofrem com a violência. Já as mais ricas são impedidas de circular com certa autonomia pela cidade e, portanto, não a conhecem, resultado esse que pode ser considerado um dos fenômenos mais complexos que vivenciamos no Brasil – a violência. E cuja origem pode estar associada à desigualdade e a uma cultura masculina que valoriza a força bruta.

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