Ana Maria Machado lança o romance 'Um mapa todo seu'

Livro apresenta aos brasileiros Eufrásia Teixeira Leite, a fascinante sinhazinha que não se dobrou ao machismo

por Ângela Faria 18/12/2015 12:30
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(foto: Divulgação)
Zizinha nasceu no século 19, mas parece até contemporânea de Simone de Beauvoir, autora da frase “não se nasce mulher, torna-se mulher” – enunciado emblemático de O segundo sexo, o clássico da filosofia escrito nos anos 1940 que tanta polêmica causou no Enem 2015. Se vivesse neste século 21, talvez Zizinha apoiasse as moças que ocuparam as ruas brasileiras, há dois meses, para defender o direito de serem donas do próprio destino.

Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930) inspirou Zizinha, protagonista do romance Um mapa todo seu, lançado por Ana Maria Machado. Ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e autora de cerca de 100 livros, essa carioca faz reviver, por meio da ficção, uma das mulheres mais fascinantes do Brasil.

Amor da vida de Joaquim Nabuco, a bela milionária de Vassouras nunca se limitou a sinhazinha. Órfã aos 20 e poucos anos, a moça recusou a tutela do poderoso tio barão e tocou os negócios do pai, sujeito esclarecido que gostava de conversar sobre o mundo das finanças com a caçula. Trocou a provinciana cidade fluminense pela capital francesa, livrando-se da parentela. Pioneira, frequentou a Bolsa de Valores de Paris – para surpresa dos europeus – e investia nas ações certas. Diferente das mulheres de sua época – a mãe, fina flor da elite cafeeira, nem sequer sabia ler –, Eufrásia correspondia-se com investidores, entre eles os graúdos do clã Rotschild. Perdeu dinheiro depois da revolução russa de 1917 e no crash de 1929, mas soube se reerguer.

Zizinha fazia belo par com o charmoso, culto e refinado Joaquim Nabuco (1849-1910), abolicionista e orador brilhante. A personagem de Ana Maria Machado jamais se rendeu ao mito do amor romântico, que até hoje faz a cabeça das garotas. Foram 14 anos de relacionamento, entre noivado desfeito, idas e vindas, lágrimas e vários pedidos de casamento por parte dele. Todos recusados. Quincas, o Belo considerava normal ser conquistador e infiel – como os aristocratas de sua época e os rapazes de hoje.

Um mapa todo seu é o livro de Eufrásia. A trajetória dessa moça à frente de seu tempo não é propriamente desconhecida. José Carlos Bruzzi Castello escreveu sua biografia (esgotada há anos), historiadores lhe dedicaram artigos e a pesquisadora Angela Alonso a “resgatou” no volume da série Perfis brasileiros sobre Joaquim Nabuco. Mais recentemente, o jornalista Marcos Sá Corrêa publicou reportagem sobre ela na revista Piaui.

Coube a Ana Maria Machado nos fazer cúmplices dessa mulher que trabalha, ama, sofre, ousa – e paga o preço disso. Sagaz, Zizinha derrotou, à sua maneira, o opressivo mundo intolerante que a cercava. Às ricaças oitocentistas, no máximo, era reservado o tal “bom” casamento. Mas ela, com sua competência, multiplicou a fortuna do pai. O noivo lutou para abolir a escravatura. Eufrásia, de certa maneira, “comprou” a própria liberdade.

Detalhe: não se trata de mulher “empoderada” pela viuvez, como as matriarcas valentes que encontramos na história da elite nacional. Zizinha/Eufrásia fez tudo sozinha: sem tio barão, sem noivo brilhante. Chamá-la de feminista talvez seja anacrônico, “pecado” tão comum em romances que usam o passado para falar do presente. No posfácio, Ana Maria Machado revela seu esforço para “jamais agredir a história”, conta que pesquisou extenso material sobre Nabuco e garimpou informações sobre Eufrásia, encantando-se com a “dimensão hipnotizante” dessa brasileira, que, como diz Beauvoir, aprendeu a se tornar mulher.

Quincas se casou com outra. Rompeu com Zizinha depois que ela “ousou” lhe oferecer dinheiro ao vê-lo arruinado por uma campanha política. Eufrásia morreu octogenária, vários anos depois dele, escrevendo – ela própria – o próprio grand finale. Não deixou a imensa fortuna para os parentes, fez do povo de Vassouras seu herdeiro. Graças a ela, até hoje lá estão o hospital, o quartel da polícia e escolas.

Pensando bem, seria mesmo anacrônico chamar Zizinha de feminista?



UM MAPA TODO SEU
De Ana Maria Machado
Alfaguara
224 páginas
R$ 27,90

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