Documentos da Comissão Construtora de Belo Horizonte são reconhecidos pela Unesco como patrimônio

Quatro instituições da capital são responsáveis por sua manutenção de mais de 7 mil itens

Leônidas Oliveira *

Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital/Reprodução
(foto: Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital/Reprodução)
Os documentos que integram o Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital e que deram origem à cidade de Belo Horizonte foram selecionados pela Unesco, neste ano de 2015, para integrar o Programa Memória do Mundo (Memory of the World – MOW). A coleção está sob a guarda de quatro grandes instituições com sede na capital, três municipais – Fundação Municipal de Cultura, guardada e preservada nos seus dois equipamentos de guarda de acervo histórico, Arquivo Público da Cidade (APCBH) e Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB)– e uma estadual: Arquivo Público Mineiro (APM).

O Programa Memória do Mundo tem a finalidade de identificar os mais importantes documentos de registro da história mundial. Uma vez identificados, eles passam a ter valor de patrimônio documental da humanidade, ganhando assim reconhecimento internacional, juntamente com a cidade de Belo Horizonte, no que tange à preservação de sua história documental. No entanto, o cuidado com a salvaguarda dos registros partiu da própria Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), sabedora que era da importância dos documentos relativos à construção da nova capital para o estado de Minas Gerais. A documentação produzida e conservada pela Comissão Construtora compreende vasto material gerado a partir das atividades técnicas, das rotinas administrativas e das relações de poder e saber tecidas entre suas figuras principais – políticos, engenheiros, médicos, sanitaristas, comerciantes, funcionários públicos e antigos moradores do arraial do Curral del Rey. Em cinco anos de existência e febril atividade, a CCNC produziu vasto material manuscrito e iconográfico (mapas, plantas, fotos, croquis), além de diversas publicações.

Essa série orgânica de registros foi gerada para responder às demandas funcionais e simbólicas da comissão, em sua imensa tarefa de construir/inventar uma cidade para abrigar a sede do governo mineiro na República que se inaugurava no fim do século 19. Feitos no momento de afirmação das cidades como locus do progresso e do entusiasmo nacionalista, os registros da CCNC são também instrumentos ímpares para o estudo do processo histórico de emergência da categoria urbana, contraposta à categoria rural. Embora o plano original tenha sido elaborado por Aarão Reis, em 1894, a chefia da CCNC passou ao engenheiro mineiro Francisco de Paula Bicalho em junho de 1895. As divergências políticas sobre a administração, as concepções do ex-chefe da CCNC, ao mesmo tempo em que ocorria a mudança dos governos Afonso Pena para Bias Fortes, determinaram nova fase de trabalhos da comissão. Instalada no Arraial de Belo Horizonte, em 1º de março de 1894, foi extinta pelo Decreto estadual 1.095, de 3 de janeiro de 1898, tendo suas funções divididas e absorvidas pelas instâncias administrativas estadual e municipal.

No entanto, ao completar seus 118 anos, este ano tem mais sabor de vitória, enriquecido pela inclusão dos registros no Programa Memória do Mundo. Efemérides representam momentos ideais para revisar nossa história. Neste caso, a originária da invenção da capital. Tal desejo se intensificou com o advento do regime republicano, em que se avivou o antigo debate sobre a necessidade de mudança da capital do estado de Minas Gerais, então sediada na cidade de Ouro Preto. Em torno de projeto geopolítico de modernização do estado reuniram-se as elites governantes e técnicas, que se mostraram capazes de levar a cabo a proposta de construção de uma cidade inteiramente inventada nos gabinetes e assentada sobre um sítio secular, de onde foram varridos quase todos os vestígios de um passado considerado arcaico e insalubre. Estamos a dizer do antigo Curral del Rey.

A capital de Minas foi planejada sob preceitos urbanísticos positivistas e higienistas, os mesmos que levaram as intervenções das grandes avenidas no Rio e as do Barão Hausmann em Paris, ambas tendo como base ideias higienistas e a negação do passado. No entanto, no caso particular de Belo Horizonte, a comissão construtora teve o cuidado de contratar artistas para retratar o antigo curral, fotografá-lo e registrar tudo o que encontrou no lugar, até mesmo o número de animais, fossem eles galinhas, bois, patos ou bichos de estimação. A riqueza de detalhes impressiona e oferece ao pesquisador a possibilidade de alcançar conhecimento ampliado dos hábitos das gentes que aqui viviam.

Mas nada disso foi importante diante da sanha pelo novo, ganhando o lugar novo destino reestruturador da ordem social. Dessa reestruturação surgiram também os traumas que permanecem até os dias de hoje. Em torno dessa utopia renovadora foram reunidos homens sintonizados com as novas ideias e técnicas, desde as concepções do plano urbano e do desenho arquitetônico, passando pelos conhecimentos que então se afirmavam no momento como a cartografia, a geologia, a engenharia, todos imbuídos dos valores emergentes como o higienismo e a ciência.

Belo Horizonte foi ainda, e acima de tudo, uma aventura social radical. Ao deslocar forçosamente do sítio original todos os habitantes ali assentados desde o período colonial e ao recrutar os relutantes moradores da antiga Ouro Preto, implantou, de cima para baixo, novo regime de uso e ocupação do solo e da vivência urbana: uma terra inventada. Mesmo que circunscrita a um processo local, esta experiência contribui de forma mais abrangente para o entendimento da história do urbanismo brasileiro, de como são decididos os destinos de suas populações, de como são construídas nossas cidades e de como são tratadas algumas vezes nossas gentes e nossos destinos. Daí mais uma vez ressalta-se a importância da memória que não é mera musealização, mas objeto que possibilita profunda reflexão crítica da nossa história e conhecimento da conjuntura atual. A cidade é, antes de tudo, o lugar do encontro com o outro, do convívio, da rua, da praça em efervescência de manifestações de toda ordem. Olhar, portanto, aquele passado regular em todos os seus aspectos e contrapô-lo à diversidade contemporânea é reflexão que devemos fazer cotidianamente se quisermos fazer de Belo Horizonte uma cidade mais próxima dos seus habitantes. Nesse ponto, a comissão construtora de 1894 e a política de preservação da memória do município da atualidade coincidem.

Por todos esses aspectos, o acervo da Comissão Construtora da Nova Capital figura como o mais expressivo conjunto documental que testemunha o projeto e a construção de uma capital durante o alvorecer da República brasileira, inaugurando concepções, estratégias e soluções que se incorporaram ao repertório de intervenções e ao pensamento de gestores e urbanistas do país no século 20. Mas, ao completar 118 anos, é importante que essa história sirva de reflexão e possibilite um profundo desejo de todos pela preservação da memória da cidade e, sobretudo, que tenha um futuro desenhado a partir da pessoa humana e não das necessidades políticas e elitistas. Que ela seja cada vez mais afetuosa e próxima dos seus, com uma vida longa, mas com saúde urbana para todos nós que aqui vivemos.

O acervo da Comissão Construtora, sob custódia do APCBH, MHAB e APM, tem a seguinte dimensão: 5.669 itens de documentos textuais; 1.098 itens de documentos cartográficos; 996 itens fotográficos, e 23 objetos tridimensionais.

. Leônidas Oliveira é arquiteto-urbanista e presidente da Fundação Municipal de Cultura

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