O Programa Memória do Mundo tem a finalidade de identificar os mais importantes documentos de registro da história mundial. Uma vez identificados, eles passam a ter valor de patrimônio documental da humanidade, ganhando assim reconhecimento internacional, juntamente com a cidade de Belo Horizonte, no que tange à preservação de sua história documental. No entanto, o cuidado com a salvaguarda dos registros partiu da própria Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), sabedora que era da importância dos documentos relativos à construção da nova capital para o estado de Minas Gerais. A documentação produzida e conservada pela Comissão Construtora compreende vasto material gerado a partir das atividades técnicas, das rotinas administrativas e das relações de poder e saber tecidas entre suas figuras principais – políticos, engenheiros, médicos, sanitaristas, comerciantes, funcionários públicos e antigos moradores do arraial do Curral del Rey. Em cinco anos de existência e febril atividade, a CCNC produziu vasto material manuscrito e iconográfico (mapas, plantas, fotos, croquis), além de diversas publicações.
Essa série orgânica de registros foi gerada para responder às demandas funcionais e simbólicas da comissão, em sua imensa tarefa de construir/inventar uma cidade para abrigar a sede do governo mineiro na República que se inaugurava no fim do século 19. Feitos no momento de afirmação das cidades como locus do progresso e do entusiasmo nacionalista, os registros da CCNC são também instrumentos ímpares para o estudo do processo histórico de emergência da categoria urbana, contraposta à categoria rural.
No entanto, ao completar seus 118 anos, este ano tem mais sabor de vitória, enriquecido pela inclusão dos registros no Programa Memória do Mundo. Efemérides representam momentos ideais para revisar nossa história. Neste caso, a originária da invenção da capital. Tal desejo se intensificou com o advento do regime republicano, em que se avivou o antigo debate sobre a necessidade de mudança da capital do estado de Minas Gerais, então sediada na cidade de Ouro Preto. Em torno de projeto geopolítico de modernização do estado reuniram-se as elites governantes e técnicas, que se mostraram capazes de levar a cabo a proposta de construção de uma cidade inteiramente inventada nos gabinetes e assentada sobre um sítio secular, de onde foram varridos quase todos os vestígios de um passado considerado arcaico e insalubre. Estamos a dizer do antigo Curral del Rey.
A capital de Minas foi planejada sob preceitos urbanísticos positivistas e higienistas, os mesmos que levaram as intervenções das grandes avenidas no Rio e as do Barão Hausmann em Paris, ambas tendo como base ideias higienistas e a negação do passado. No entanto, no caso particular de Belo Horizonte, a comissão construtora teve o cuidado de contratar artistas para retratar o antigo curral, fotografá-lo e registrar tudo o que encontrou no lugar, até mesmo o número de animais, fossem eles galinhas, bois, patos ou bichos de estimação. A riqueza de detalhes impressiona e oferece ao pesquisador a possibilidade de alcançar conhecimento ampliado dos hábitos das gentes que aqui viviam.
Mas nada disso foi importante diante da sanha pelo novo, ganhando o lugar novo destino reestruturador da ordem social. Dessa reestruturação surgiram também os traumas que permanecem até os dias de hoje. Em torno dessa utopia renovadora foram reunidos homens sintonizados com as novas ideias e técnicas, desde as concepções do plano urbano e do desenho arquitetônico, passando pelos conhecimentos que então se afirmavam no momento como a cartografia, a geologia, a engenharia, todos imbuídos dos valores emergentes como o higienismo e a ciência.
Belo Horizonte foi ainda, e acima de tudo, uma aventura social radical.
Por todos esses aspectos, o acervo da Comissão Construtora da Nova Capital figura como o mais expressivo conjunto documental que testemunha o projeto e a construção de uma capital durante o alvorecer da República brasileira, inaugurando concepções, estratégias e soluções que se incorporaram ao repertório de intervenções e ao pensamento de gestores e urbanistas do país no século 20. Mas, ao completar 118 anos, é importante que essa história sirva de reflexão e possibilite um profundo desejo de todos pela preservação da memória da cidade e, sobretudo, que tenha um futuro desenhado a partir da pessoa humana e não das necessidades políticas e elitistas. Que ela seja cada vez mais afetuosa e próxima dos seus, com uma vida longa, mas com saúde urbana para todos nós que aqui vivemos.
O acervo da Comissão Construtora, sob custódia do APCBH, MHAB e APM, tem a seguinte dimensão: 5.669 itens de documentos textuais; 1.098 itens de documentos cartográficos; 996 itens fotográficos, e 23 objetos tridimensionais.
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