Marcia Tiburi defende diálogo como antídoto à intolerância que contamina a sociedade brasileira

A filósofa e escritora acaba de lançar o livro 'Como conversar com um fascista'

por Ângela Faria 29/11/2015 14:21

Tomas Arthuzzi/Divulgação
(foto: Tomas Arthuzzi/Divulgação)
Ex-país do futuro, ex-bonito por natureza, o Brasil se vê como pátria da intolerância. Enquanto amigos rompem relações e deletam amigos no Facebook devido a discordâncias políticas, entregadores de um restaurante carioca são “homenageados” com bananas no Dia da Consciência Negra pelo gerente da casa. Em Juiz de Fora, jovem gay, de 17 anos, é cruelmente espancado por mulheres, adolescentes e um homem depois de reagir a xingamentos e reafirmar sua orientação sexual. Marcha de mulheres negras, em Brasília, é encerrada com tiros desferidos por integrantes do movimento pró-ditadura militar. No início do ano, em um dos protestos contra o governo petista, lia-se no cartaz: “Dilma. Pena que não te enforcaram no DOI-Codi”. Na propaganda antitucanos, ao lado da foto de Aécio Neves, está escrito: “Não vamos desistir de vender o Brasil”.

Filosofia já. Essa é a proposta de Marcia Tiburi para o país que parece cultivar o ódio com prazer. No livro Como conversar com um fascista – Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record), a filósofa, professora universitária e escritora sai em defesa do diálogo como antídoto à intolerância. Que fique bem explícito: a intolerância de todos nós. Atire a primeira pedra quem não deu “end” naquele amigo que se tornou inimigo na campanha eleitoral de 2014, escondeu a bolsa ao topar com um negro “suspeito” na rua ou tratou como “mimimi” o empoderamento das mulheres.

Como conversar com um fascista é um título curioso. Nem todo mundo entende à primeira vista que é uma ironia e que, de fato, conversar com um fascista está mais para improvável do que possível. As pessoas ficam pensando: o que ela quis dizer com isso? Ou ficam tentando entender se criei um jeito que possa ser aplicado na prática. Só queria mostrar que o diálogo é uma forma de resistência. Em uma época em que se convida todo mundo a não conversar, propus que a gente converse. E que nos esforcemos nessa resistência subjetiva básica que é o diálogo. Parece uma brincadeira, mas é sério. É político e é poético”, diz Marcia Tiburi, em entrevista ao Pensar.

Divulgação
(foto: Divulgação)
Em seu novo livro e em palestras, você tem abordado a figura do fascista, definido como ser politicamente pobre que perdeu – ou ignora – a dimensão do diálogo. As pessoas estariam se tornando fascistas sem perceber? Esse fenômeno “ataca” gente de todos os perfis ideológicos? Por que isso se dá no Brasil contemporâneo?

Podemos até dizer que ataca perfis ideológicos diversos, mas apenas no caso daquelas pessoas incapazes de pensar. Esse é o fundo do fascismo: a impossibilidade de pensar, o despreparo, o ressentimento contra o pensamento e, por fim, o ódio ao que pensa. De fato, são mais comuns à direita, no contexto dos conservadorismos e reacionarismos, mas não apenas. Pode haver fascismo à esquerda, sobretudo se pensarmos na esquerda machista. O fascismo é o espetáculo do preconceito e, nesse caso, serve mais ao que chamam há tempos de direita. Não falei disso no livro, porque o mais importante, a meu ver, é perceber que vivemos há décadas uma desvalorização cada vez maior do pensamento reflexivo. Não creio que a oposição direita versus esquerda resolva muitas questões entre nós. Prefiro, particularmente, pensar no feminismo como superação crítica desse dualismo impotente, ainda que, se precisasse, afirmaria que um mundo à esquerda é melhor do que à direita. Mas isso podemos discutir, abertamente, em um diálogo entre pessoas não fascistas que podem trocar ideias em um contexto de dissenso. O que me preocupa é o avanço que foi a ditadura militar entre nós. A ditadura foi o fascismo elevado à razão de Estado. Ela impediu até aulas de filosofia nas escolas; as faculdades que conseguiram sobreviver, os professores que não foram cassados foram controlados pela censura! E o que estava em cena? O medo do pensamento, o medo do verdadeiro perigo que é o pensamento para o sistema econômico e político.

E hoje? Como isso se dá no Brasil pós-ditadura?
Ora, hoje temos que o fascismo é uma exploração espetacular do preconceito, que tem seu melhor momento no discurso do ódio que está como que liberado pelos meios de comunicação herdeiros da ditadura... As redes sociais apenas espalham o que já foi gerado pelas talking heads, as cabeças falantes da TV. E isso não é uma simplificação. A televisão e as revistas, bem como os jornais, o que chamamos pelo nome feio de “mídia”, em geral, têm interesse real no que se passa no país. Afinal, não são apenas aparelhos ideológicos do Estado, mas o próprio Estado é meio ideológico do capitalismo, esse fundamentalismo econômico que convence todo mundo por meio da artimanha publicitária, como, em geral, ocorre com qualquer religião. É preciso ordenar: “Compre!”. E, de vez em quando, “odeie!”. Esse discurso de ódio é utilíssimo em termos de poder. Não podemos acreditar que algo de natural esteja acontecendo. O ódio ostentado é manipulado, fomentado, produzido. Ele serve, ele gera poder; por isso, todos os ressentidos se apegam a ele. Logo, as pessoas estão aderindo por interesses, mesmo que não tenham reflexão e teoria pessoal capazes de expor sinceramente esses “interesses”. Os interesses não são só econômicos ou políticos, mas psíquicos. O fascista é um sujeito humilhado e rebaixado que constrói a lógica do superior/inferior para poder garantir algo para si, um pingo, um mínimo de existência, por meio da humilhação do outro. A pessoa que adere ganha o que nunca teve: a sensação de que é importante.

Não corremos o risco de qualificar como fascistas e analfabetas políticas apenas as pessoas que discordam da gente?
Acho que não, porque a medida é o preconceito que impede de compreender o outro. Fascista é o que não está aberto. Quem “quer conversar com um fascista” está aberto. Não fascistas – ou seja, pessoas que pensam dentro de um regime de pensamento democrático – costumam estar abertas ao outro, querem compreender e se esforçam. O fascista não. Ele é prepotente como um paranoico que tem todas as repostas de antemão. Ele agride, porque a agressão coopta. Mas nem todo mundo gosta da agressão. Quem não gosta, em geral, não é fascista. Não é o meu “não gostar” que me torna fascista, mas a minha incapacidade de reconhecer o lugar e o valor do outro. Por isso, não podemos sair chamando de fascista um conservador simplesmente. O fascista vai mais longe. Ele transforma sua fala odiosa em espetáculo sem pensar que o que diz fere as pessoas. Provavelmente, ao saber que o outro sofre com o que ouve o fascista se sinta realizado. Ele perdeu o sentimento de compaixão que nos faz sentir a dor do outro como se fosse nossa. O fascista gosta de pisar, mas também gosta de ser pisado. A questão é bem objetiva. Um fascista tem características bem típicas: entre elas, ser um puxa-saco nas horas que lhe convêm. Além disso, como não vê a outra pessoa como um sujeito de direitos, projeta no outro tudo o que odeia nele mesmo. E se preocupa muito com a sexualidade do outro, porque a sua própria vai muito mal resolvida. Quando estamos assim, invejamos o desejo alheio...

Como fazer com que o diálogo, a conversa, o dedo de prosa, enfim, seja realmente uma conversa – e não, digamos, uma “timeline verbal de surdos”? Você acredita que as pessoas estão realmente dispostas a ouvir o outro e a se questionar?

Não todo mundo. A personalidade autoritária é um tipo concreto. No livro, dou uma dica bem concreta. Falo do diálogo como resistência. Ou seja, talvez a gente nunca consiga falar com um fascista, mas pelo menos não nos tornaremos um se persistirmos no diálogo. O diálogo implica o outro, cuja dimensão falta para o fascista. Ao fascista falta o senso de reconhecimento. Nele impera o preconceito.

A política é associada à arte do diálogo, da negociação e até do “toma lá dá cá consensual”. Neste momento, ela está demonizada: em vez de instrumento para superar impasses, é apontada como a causa, o motivo do caos, digamos assim. Isso foi diferente em outros momentos históricos. Na época da redemocratização, da luta pela anistia, havia entusiasmo das pessoas com os comícios das diretas, por exemplo. Na sua opinião, essa “velha chama” renasceu nas jornadas de junho de 2013 e nas recentes passeatas das mulheres? Como “ressignificar” a política?

Não me refiro a conversar no sentido de buscar consenso. Não defendo o consenso em sentido algum. As pessoas não precisam, nem devem, pensar igual. Diálogo, aliás, é a busca do esclarecimento pela diferença que se encontra no jogo de linguagem com o outro. A política é agonística, ela vive no dissenso. Mas podemos respeitar regras democráticas básicas, tais como eleições. No contexto atual, precisamos ter um mínimo de senso de cidadania que impeça as pessoas de se manifestar de modo grosseiro, grostesco ou bárbaro. Hoje em dia, a linguagem política está rebaixada, mas porque ela é fruto de todos os processos de rebaixamento que fazem parte do grande rebaixamento ao poder que é o capitalismo e, ao mesmo tempo, o patriarcado, o sistema da dominação masculina no que concerne à questão de gênero. Por fim, a minha preocupação foi pensar essa conversa no sentido de uma crítica ao que chamei de “consumismo da linguagem”. Na política que exercemos com o mais próximo, e com os outros que encontramos nas redes, podemos dizer que vivemos uma experiência politicamente empobrecida. Podemos dizer que esse empobrecimento surge em função do empobrecimento da linguagem. Com uma linguagem pobre, pensamos pouco. A cultura do consumo, do comprar por comprar, é análoga ao dizer por dizer. Aquele que ostenta um carro, uma bolsa, também ostenta uma ideia pronta de que ele comprou baratinho: da política morta, que é a política transformada em propaganda. Preocupa-me a política como exercício de cidadania. É ela que elege os tipos mais estranhos, fundamentalistas e assustadores, verdadeiros lobisomens, para os cargos de poder. Um sujeito humilhado vota em quem parece defendê-lo, quando, na verdade, está sendo manipulado em seu lugar desprezado, que só vale – e mesmo assim, bem pouco – no momento do voto.

Neste momento, o Brasil está sob o impacto da tragédia ecológica causada pelo rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP, em Mariana. Coisas assim servem para unir os brasileiros, sobretudo nesse contexto de tanto ódio separando as pessoas?
Quem não é especialista na área, mas sabe que o poder está em todo lugar manipulando o sentido dos acontecimentos, fica desconfiado quanto a cada detalhe do que é contado. Estamos diante de um crime, de um grande assassinato, mas não sabemos bem como atribuir responsabilidade aos responsáveis, até porque os meios da simples cidadania envergonhada e aviltada são sempre os mais fracos. Certamente, a morte do bioma do Rio Doce é uma morte indesejada mesmo pelos donos do poder e dos interesses em jogo, que sempre usaram o rio a seu favor. Esta catástrofe surge da negligência dos responsáveis. Não sei o que dizer, porque, ao fim e ao cabo, os interesses do capital sempre prevalecem sobre a natureza, sobre a vida, sobre a cultura e sobre as pessoas. O capitalismo é um fundamentalismo que reduz o valor da vida à economia. Uma catástrofe como esta, infelizmente, é a realização do capitalismo. Não será diferente no futuro.

A intolerância é globalizada. Como você analisa o atentado do Estado Islâmico em Paris? Em nome da segurança, vamos demonizar muçulmanos, sacrificar as liberdades democráticas? Resumindo: vamos reforçar o fascismo?

Também tenho essa curiosidade. Fico pensando por que os jornais e TVs só falam de Paris e não falam de Mariana, falam de Paris e não falam da África... Muitos interesses em jogo. E, no meio do espetáculo, a morte. Paris atacada por fundamentalistas que surgem em um contexto de muitas manipulações internacionais. Quem não se espanta com o império americano e sua poderosa indústria de armas, que, ao mesmo tempo, coloca-se contra o terrorismo? Os EUA e os países europeus – especialistas em guerras e massacres – e todos os poderosos me parecem sempre aquele policial que matou o menino Eduardo, aos seus 10 anos, e alegou “legítima defesa”. Agora, se poderá fomentar com facilidade o ódio geral a toda a cultura islâmica, como se o que ocorreu não tivesse sido produzido dentro de um cenário. Verdade, tudo conflui para o fascismo. O fascismo é um método, um jogo sujo, politicamente falando, e que, ao nível das relações mais íntimas, tem causas éticas que precisam ser analisadas com cuidado. Tentei colocar essas questões no livro com uma proposição filosófica básica: é preciso fazer pensar, porque só o pensamento reflexivo impede o avanço do fascismo.

COMO CONVERSAR COM UM FASCISTA
• De Marcia Tiburi
• Editora Record
• 194 páginas, R$ 42

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