Ação das mineradoras vai de encontro ao mito dos sertões do ouro associado a Minas Gerais

Tragédia em Mariana convida a repensar um dos elementos principais daquilo que pode ser chamado de identidade mineira

por Eduardo Tristão Girão 20/11/2015 12:30
Sidney Lopes/EM/D.A Press
Cachoeira do rio Gualaxo é afetada pela lama, após rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, que derramou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos, no maior desastre ambiental da história da mineração no Brasil (foto: Sidney Lopes/EM/D.A Press )
Minas Gerais. Montanhas, religiosidade, comida típica, gente do campo, pedras preciosas, apito do trem. Talvez esteja aí um breve apanhado do que habitualmente simboliza o estado. Entretanto, pedra preciosa e mineração não são sinônimos – e a tragédia em Mariana, para além das perdas humanas, ambientais e econômicas, convida a repensar um dos elementos principais daquilo que pode ser chamado de identidade mineira.

A composição do solo de Minas Gerais, antes de mais nada, é uma questão de ordem geológica (portanto, natural) e a exploração da terra faz parte da história do estado desde o século 17. Não por acaso, o nome Minas Gerais deriva da quantidade e variedade de metais e gemas encontrados por aqui. A atividade ainda é um dos pilares da economia local neste século 21, mas falar em “histórica vocação mineradora” jamais pareceu tão descabido como agora. O chacoalhar das bateias nos arredores das vilas, séculos atrás, nada tem a ver com empresas transnacionais que hoje esburacam montanhas e esterilizam a terra.

“Não se trata mais de um processo histórico disseminado por pessoas, mas de capital em larga escala e moradores amedrontados que não são mais partícipes. Antes, qualquer pessoa podia tentar tirar sustento das lavras, era uma prática comum nas imediações do espaço urbano. Isso, sim, faz parte da identidade do sujeito. Hoje, é muito diferente e tem muito pouco a ver com a figura atual do garimpeiro. A mineração em larga escala exclui e, literalmente, aterra as pessoas”, analisa o professor Francisco Eduardo de Andrade, chefe do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

Para o especialista, no caso de Mariana, há outro equívoco ligado à construção da identidade da cidade: a frequente associação da exploração de ferro como marco de fundação daquela sociedade. “É como se a agricultura, que sempre foi importante para o município, não existisse. A produção de ferro nem começou com a Vale, mas no final do século 18. E era grande, embora disseminada em pequenas explorações. Esse discurso é uma ferramenta ideológica de apagamento da memória”, adverte.

Afirmar que mineradoras como a Vale e a Samarco trouxeram progresso para as regiões onde se instalaram não faz sentido, garante o professor. Na visão dele, é perigosa a ideia da empresa que injeta recursos em uma comunidade e, assim, permite seu desenvolvimento. “O discurso do desenvolvimentismo atrai. Enredadas nisso, as pessoas não querem perceber as consequências a médio prazo, nem as perdas que poderão ter. A ideologia desenvolvimentista apaga tudo isso”, diz.

Autor dos livros Entre a roça e o engenho: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do século 19 (UFV) e A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos sertões do ouro (Autêntica/PUC Minas), Andrade destaca que o Ciclo do Ouro, no século 18, produziu o mesmo que a mineração contemporânea: pobreza, em vez de riqueza. As consequências são “violência, droga, desenraizamento de pessoas que vão para as cidades ao redor, e não a integração delas na sociedade, que recebe mal quem chega de fora”, afirma.

IMAGEM Douglas Libby, professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concorda que não faz sentido continuar associando mineração à identidade mineira. “Com equipamentos gigantescos para retirar minério, a coisa se torna industrial. É uma fase inteiramente nova, com consequências historicamente muito novas. Agora é que começamos a ver o que pode ocorrer quando se tem que cuidar de quantidades gigantescas de rejeitos de mineração”, alerta Libby, que há 35 anos pesquisa o passado de Minas Gerais.

Além disso, lembra o professor, há a questão da imagem. A atividade nunca foi vista de maneira positiva em relação ao meio ambiente – e isso piorou consideravelmente com o passar do tempo. “No início, a mineração aluvial mexia com os cursos de água, mas não era particularmente grave. Quando começaram a buscar minério bruto e água de muito longe para lavá-lo, foi preciso mexer muito, o que deixava rastros terríveis. No século 18, os portugueses já haviam registrado como a mineração deixava o meio ambiente arrasado. Todos os antigos exploradores comentaram isso”, informa. A mineração, conclui, nunca foi algo cuidadoso com o meio ambiente.

Em 2013, a historiadora Carolina Capanema, funcionária do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, defendeu tese de doutorado na UFMG sobre o tema “A natureza política das Minas: mineração, sociedade e ambiente no século 18”. No trabalho, ela questiona a imagem da sociedade mineradora ignorante em relação ao impacto da atividade na natureza. A pesquisa traz evidências documentais indicando não apenas a preocupação da população com essas consequências, mas também medidas de recuperação de áreas atingidas. Já naquela época, conviviam interpretações negativas sobre a atividade e os interesses econômicos envolvidos.

USO POLÍTICO
“Tragédias como a de Mariana ocorrem em Minas desde o século 18. A cidade sofreu com várias inundações, as mais graves consequências do próprio planejamento urbano. No passado, algumas inundações, provavelmente, ocorreram por conta da mineração. A história ajuda a pensar sobre a continuidade de alguns processos, e o uso político da tragédia é um deles. Acho que 2016 será um ano de decisões políticas. Até quando a mineração será feita sem considerar suas consequências? Até quando isso será usado em manobras políticas e a favor de interesses econômicos?”, questiona Carolina Capanema.

A historiadora afirma que as mineradoras costumam usar conceitos como responsabilidade social para induzir a conclusão de que a atividade, atualmente, se dá com maior respeito ao meio ambiente do que no passado. “A amplitude dessa atividade é muito maior do que antes. O argumento delas é furado. O prefeito de Mariana diz que as pessoas vão perder o emprego se a Samarco acabar, mas está na hora de pensar que tipo de desenvolvimento queremos. Para o povo brasileiro, não há vantagem nisso. A mineração é uma realidade, mas a forma como é feita é irresponsável. É hora de repensar essa atividade”, conclui.

MAIS SOBRE PENSAR