'Dicionário feminino da infâmia' contribui para o debate sobre a violência contra a mulher

Publicação auxilia nesse momento em que passeatas tomam as ruas para protestar contra a ofensiva conservadora no Congresso Nacional

13/11/2015 12:30

Elizabeth Fleury-Teixeira

 

Quando uma velha amiga (dos difíceis tempos da censura nas redações de jornais, revistas, emissoras de rádio e TV brasileiras) te liga para pedir um texto analítico sobre as manifestações de mulheres contra o Projeto de Lei 5.069/13, que em breve irá à votação no plenário da Câmara dos Deputados, significa que algo não está indo bem no Reino da Dinamarca... Nos espaços de estudo e trabalho onde atuo nos últimos anos, voltados para a pesquisa de políticas públicas ou de gênero e questões de violência (que só faz aumentar nas últimas duas décadas, no Brasil e no mundo), também se diz que as coisas nunca pareceram tão complexas e opacas para estudiosas e estudiosos de referência, que dedicaram a vida a tentar compreender fenômenos assim.

Ramon Lisboa/EM/D.A Press
(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Penso em conversas que venho tendo com esses estudiosos... Conversas longas e profundas ou apenas pequenas observações trocadas em congressos e aeroportos, telefonemas rápidos, quando pesquisadoras e pesquisadores que têm se dedicado nos últimos 30 ou 40 anos a esses temas se dizem perplexos com o que nos trazem os “novos tempos”. Tempos coroados de tentativas de nos recolhermos, todos nós, às bolhas de sexo, classe social, cor e educação às quais fomos confinados em razão de nossos nascimentos e formatos de nossas famílias. Isso para citar somente alguns aspectos relevantes que nos definem antes mesmo de nossas próprias biografias terem nos levado para a frente, para o lado ou para trás desses traços de nascimento, cor, educação e condições socioeconômicas que originalmente nos introduzem no mundo.

Quando, no Brasil, a garotada das universidades começa a se agitar e a se unir no que hoje chamam de “coletivos” – um recurso de política modernizada que tem pipocado pelo mundo nas esferas de militância da juventude –, saindo pelas ruas das grandes cidades munida de suas ideias e recursos políticos, estratégias de ocupar nossos corações e mentes, confesso que me interessei, emocionei-me e me apavorei ao final. Saía para as tarefas de trabalho sempre com a memória acesa por cenas antigas, retiradas de nossas gavetas da memória coletiva dos tempos de ditadura, que passaram a conviver feito fantasmas (diletos ou terríveis) com os tempos atuais. Muita gente me viu parada no carro, nos sinais de trânsito em Belo Horizonte, derramando lágrimas, movida por alguma música que tocava no rádio e por lembranças das imagens que as TVs brasileiras nos mostraram à exaustão naqueles dias de junho de 2013, misturadas a cenas que vieram povoar o cotidiano, mas vindas de um passado que tentamos em vão esquecer.

CIDADANIA

Decerto que nos orgulhamos todos dos estudantes universitários e secundaristas se unindo a cidadãos de outras tribos para reclamar, protestar, expor suas preocupações, críticas e, sobretudo, expressar sua cidadania. Fosse o que fosse, a liberdade se garante sempre. E meus contemporâneos, que há 40 anos dividimos momentos difíceis na juventude, fazendo a luta por democracia, fomos tangidos aos encontros coletivos agora dividindo outras preocupações comuns: quem são esses jovens das manifestações?. E nos sentávamos em locais de reunião, encontros de reflexão, espaços de lazer ou onde houvesse mais de duas pessoas para tentar compreender o que se passava. Esboços de explicação foram feitos em muitas esferas – de pesquisa sociológica e de antropologia urbana, de militância política, de ciência política, de filosofia etc. Porém, apenas o tempo dotará todos do necessário distanciamento, permitindo analisar, por exemplo, como se movem os agentes: compreender por que agem (movidos por que motivos/interesses e necessidades) aqueles que se uniam/unem nessas manifestações da juventude contemporânea.

Poderemos fazer das já intituladas “jornadas de junho”, de dois anos atrás, um paralelo com os recentes protestos de mulheres contra as pretendidas modificações no Código Penal brasileiro que ocorreram em nosso país? Creio que isso de imediato devem perguntar aqueles que estão impulsionados pela necessidade/desejo de repensar a política e rever os últimos anos de manifestações de rua no Brasil e pelo mundo. Estão necessariamente imbricadas como fenômeno de manifestação do pensamento e das vontades e se expressando nas ruas os jovens de 2013 e essas mulheres que recentemente povoaram las calles? – poderia perguntar o ex-presidente uruguaio José Mujica, novo ídolo dos que se colocam mais à esquerda no espectro político das movimentações da juventude na América Latina.

Em minha opinião, estão. E de certa forma nos conforta, ainda não sei se utopicamente, saber que nossas agendas de mulheres estão nas mãos de garotas guerreiras como já fomos e talvez ainda sejamos, na forma como podem ser senhoras de meia-idade que lutam por um mundo melhor, digamos. Atuando com os instrumentos fornecidos por sua alegria, criatividade e juventude, as novas feministas arrastam em sua luta muitos rapazes de pensamento não machista e críticos do comportamento mais retrógrado que hoje se exibe – e como – também nas redes sociais. São bandeiras erigidas lá no velho século 19 que elas ainda exibem, embora não saibam disso e nem deveriam sabê-lo, para expressar a indignação que tão bem souberam mostrar.

Muitas dessas garotas tive a oportunidade de conhecer nos bancos da universidade ao retornar para polir os neurônios na incursão pela ciência política e pela sociologia que iniciei em meados da primeira década dos anos 2000. Naquele momento, a franqueza aguerrida das meninas me assustou um pouco, embora, alguns anos mais tarde, fui me lembrando de nosso velho grupo de universitárias feministas dos anos 1970, que pretendia mudar o mundo também pelo lado do padrão cultural e ideológico em relação à igualdade entre mulheres e homens – e não apenas do ponto de vista das estruturas socioeconômicas. Os de minha geração vão entender o que digo, certamente.

Depois de boas lembranças me fazerem uma visita, compreendemos: éramos bem parecidas com elas. Talvez por isso, nossas mães e pais pareciam tão surpresos e, muitas vezes, apavorados ao ouvir nossas fortes opiniões sobre tudo! Mas, enfim, voltando à discussão sobre o que essas moças e rapazes de pensamento avançado e não convencional representam; bem, eles representam o que devem representar: o futuro e o contradiscurso do qual o mundo muito necessita, embora a maioria não tenha a menor sobra de consciência. Representam aquela sensação de que o amanhã não deixou de existir, mas que de vez em quando nos visita para dizer que não foi em vão o dia em que também fomos para as ruas, o fato de parirmos nossos filhos no momento que achamos mais adequado e montar nossas famílias do jeito que pensamos ser possível e até necessário para o mundo caminhar bem.


FÓRUM SOCIAL

Para quem se preocupa em interpretar o mundo atual, é preciso nos lembrarmos das várias edições do Fórum Social Mundial, iniciado na virada do século na Porto Alegre esperançosa e militante de nosso recente fin de siécle... Os jovens que participaram daquelas primeiras edições já não estão mais nas universidades. Decerto, vivem as primeiras experiências profissionais, formam suas famílias nos múltiplos desenhos que sempre defenderam e, como pais e mães, vão dando formato a novas maneiras de ver o mundo e viver a vida. Isto é, talvez não possam prosseguir nesses formatos que “sempre” defenderam... As novas configurações legais que surgem no Congresso Nacional, que agora abriga perfis não tão progressistas, estão em franco confronto com as últimas construções democratizantes produzidas pelo pensamento, como direi, arejado dos que lutaram por democracia nos últimos 40 anos.

Afinal, no pós-Fórum Social Mundial, outras “novidades” emergiram no cenário nacional: pastores bem alertas quanto a seus interesses (nem sempre coletivos e comunitários, como pregaria a Bíblia que a gente conheceu), jovens conservadores educados por famílias pentecostais ou famílias de fundamentalistas cristãos, originários do revigoramento dos conservadores cristãos, fenômeno detectado pela sociologia e pela antropologia da religião atual nas esferas de estudos acadêmicos.

O ressurgimento do conservadorismo entre os jovens e a convivência simultânea com as ferramentas fornecidas pelas tecnologias virtuais potencializam as possibilidades de que também os conservadores se identifiquem, reconheçam-se e se agrupem, organizando-se para que, como agentes de seus próprios interesses, ocupem o espaço da vida pública buscando expressar seus pontos de vista e necessidades. Ocupando não só a vida virtual, mas a real, palpável.

Desse modo, ganha expressão a movimentação dos conservadores no Congresso – conservadores preparados intelectual e politicamente de maneira a lutar por legitimação e espaço de poder para suas ideias morais de mundo e sua concepção política do espaço democrático conquistado pela geração anterior. Esses se unem aos antigos “militantes” da tradição que já foi classificada de ultrapassada e parece ganhar vida nova com o sangue jovem trazido por esses tempos, ops, modernos. Unem-se a eles também os “conservadores” de ocasião, que, na ausência da necessária reforma política, movem-se e conseguem atuar para convencer potenciais eleitores de sua capacidade de representar os que com eles parecem se identificar.


PARA TODOS

Já fui longe nesta tentativa acanhada de descrever o que penso estar se passando em um Congresso onde hoje raramente reconhecemos os “progressistas” do passado recente – moderados ou mais radicais – que nos trouxeram até aqui e conseguiram manter uma certa dignidade na prática política sempre atravessada por interesses privados que se escondem atrás de um suposto discurso de interesses públicos. Costumo responder com um verso da famosa canção popular à questão “onde estão aqueles progressistas de boa cepa do passado recente para nos auxiliar neste momento obscuro da vida política nacional?”. Morreram de “fel, moléstia e crime”, como diz Chico Buarque em Paratodos.

Como entra nessa história o Dicionário feminino da infâmia – Acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência? Devido ao tempo que dedicamos a ele – eu e minha parceira neste projeto, a médica gaúcha Stela Nazareth Meneghel –, de meados de 2010 até este ano, trata-se quase de uma entidade, um ser vivo que vem nos acompanhando. Um amigo camarada, que gostaríamos de apresentar a quem vier: você vai ficar por dentro de muita coisa feita pelas mulheres neste mundão velho e sem porteira, amiga, sem se ferir, sem ter de fazer BO, o boletim de ocorrência exigido no Projeto de Lei 5.069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), presidente da Câmara, nem exame de corpo de delito.

Rememorando: o texto aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara altera o Código Penal, propondo-se a dotar o sistema jurídico brasileiro “de mecanismos mais efetivos para refrear a prática do aborto, que vem sendo perpetrada sob os auspícios de artimanhas jurídicas, em desrespeito da vontade amplamente majoritária do povo brasileiro”.

Na prática, impõe-se a necessidade de exame de corpo de delito para comprovar o aborto e sua comunicação à polícia – por meio do BO – antes do atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Grupos que defendem os direitos da mulher denunciam: essa exigência dificultará ainda mais o acesso ao aborto legal. Nas últimas semanas, mulheres foram às ruas de cidades brasileiras protestar. Argumentam que o texto dificulta a comprovação do estupro e do aborto legal, além de restringir a venda de medicamentos como a pílula do dia seguinte. Nos cartazes está escrito: “O corpo é nosso”.

Ao elaborar o Dicionário feminino da infâmia..., procuramos desenvolver um trabalho com a clareza de que, para fazer avançar nossas consciências, não é possível fazê-lo sem história, sem identidade e muito menos sem informação. Tentamos unir ciência e técnica, reunindo em um só volume informações e estudos de vários campos – antropologia, sociologia, filosofia, história e psicologia, bem como saúde, segurança pública, assistência social e direito. Todos em enfoques voltados para as múltiplas questões que envolvem a discussão da violência praticada contra as mulheres.


RETROCESSO

Penso que este é o momento certo para se lançar uma obra assim, embora não pretendíamos que o mundo estivesse enfrentando tamanho retrocesso. Mas se é para dar uma contribuição neste momento em que muitas e muitos são quase compelidos a definir de que lado da vida estão colhendo seu olhar sobre o mundo ou para onde acham que devemos ir, preferimos que as pessoas façam suas escolhas baseando-se em boas reflexões e dados colhidos com cuidado.

Acreditamos ser importante dar a todas as mulheres, jovens ou não, profissionais de equipes da área pública ou de ONGs mais consciência sobre seus direitos e de onde herdaram agendas tão criativas quanto interessantes em sua jornada pela liberdade, igualdade e fraternidade entre os povos. Nas boas livrarias do país, o Dicionário feminino da infâmia, publicado pela Editora Fiocruz, poderá ser encontrado. Garantimos que será um encontro de consciências com outras consciências que por aqui deixaram suas contribuições desde há muito.

Elizabeth Fleury-Teixeira
é mestre em sociologia, pós-graduada em ciência política, com especialização em políticas públicas, e jornalista



SAIBA MAIS

Mutirão
Com cerca de 100 colaboradores e pesquisadores, o Dicionário feminino da infâmia... tem o apoio do Comitê Nacional Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Organizado por Elizabeth Fleury-Teixeira e Stela Nazareth Meneghel, o volume aborda temas como aborto, estupro, redes sociais, ética feminina, trabalho, autoestima, violência, feminismo e lesbofobia. A obra é fruto do trabalho de profissionais ligados a universidades, agências governamentais, serviços públicos de saúde, seguridade social e segurança pública, além de setores jurídico-policiais e organizações não governamentais. O objetivo é oferecer informações a todos que lidam com mulheres em situação de violência – tanto o público leigo quanto profissionais nas áreas de saúde, assistência social, segurança e Justiça, entre outras.


DICIONÁRIO FEMININO DA INFÂMIA
Acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência

• Orgazinação: Elizabeth Fleury-Teixeira e Stela Nazareth Meneghel
• Editora Fiocruz
• 422 páginas
• R$ 79
• Informações: www.fiocruz.br/editora

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