BH sedia na próxima semana o 12º Congresso Internacional de Estética

O professor de filosofia Verlaine Freitas discute a experiência estética e sua relação com a natureza e a obra de arte

por 09/10/2015 12:30
Verlaine Freitas*

Quando à noite olhamos atentamente para o céu estrelado longe das luzes das grandes cidades, temos uma experiência estética avassaladora. Os astros que brilham desde a imensidão inalcançável de um cosmos e se derramam ao infinito não são apenas “belos”. Na verdade, se tentarmos apreender todos aqueles pontos luminosos em nosso campo perceptivo para formar uma totalidade, ao mesmo tempo em que reforçamos nossa consciência de que por detrás de cada fonte de luz daquelas existem bilhões e bilhões de outras; se tentarmos progredir rumo a uma unidade abrangente de tudo o que podemos captar visualmente nessa enorme abóbada celeste, chegará rapidamente um instante em que nos apercebemos de um limite: o infinito do cosmos não cabe na finitude, no enquadramento de nossa visão.

Prestando atenção a essa experiência, vemos que, no instante em que fracassamos ao tentar produzir uma imagem total do infinito, temos uma sensação de desprazer, marcada por uma insuficiência constitutiva de nossos poderes de conhecimento da realidade. É como se desejássemos, inconscientemente, tornar comensurável a nós aquilo que escapa a todas as medidas possíveis. Todos os objetos que admitem essa equalização conosco podem, em grande parte, ser chamados de “belos”, pois nosso vínculo com eles é de harmonia, de um prazer positivamente experimentado. Como classificaremos, porém, aquela experiência, em princípio dolorosa, com um objeto grandiloquente, que escapa indefinidamente ao senso de harmonização? Além disso: não haverá prazer mesclado a essa sensação de desconforto?

Desde a Antiguidade grega reservou-se o conceito de sublime para demarcar a experiência estética que escapa aos limites da beleza, colocando-nos face a face com o incomensurável, ou seja, com o infinitamente grande. Para quem realizou alguma vez de forma consistente essa experiência de contemplar a miríade de astros luminosos que ressaltam como ondas estacionárias, recobrindo de um véu espesso o fundo negro e abissal do firmamento, torna-se claro que o desprazer do vínculo com um ilimitado que não cabe em nossa totalidade perceptiva é acompanhado, sim, de um prazer. Trata-se de uma experiência que, em toda sua completude, será satisfatória, de alguma maneira. A pergunta é: como explicar esse prazer posterior que precisou atravessar a negatividade para poder surgir?

Segundo a perspectiva do filósofo alemão Immanuel Kant, esse infinito da natureza que parece nos oprimir acabará sendo assimilado como uma espécie de eco ou reflexo da grandiosidade de nosso próprio espírito. É como se nossa incapacidade de fornecer uma imagem do infinito fosse instantaneamente transformada em uma potência de figuração de uma outra ordem, em que somos levados a nos situar em um novo plano de concepção de nós e da natureza, no qual a profundidade e o poder de nossa razão, de nossa espiritualidade e de nossa subjetividade não apenas podem ser comparados ao infinito, mas até mesmo vivenciados como superiores a ele!

Entre as diversas facetas desse movimento duplo de desprazer e prazer, uma que é especialmente interessante é a da necessidade de nos mantermos conscientes de que se trata apenas de uma experiência estética, contemplativa, calcada pela busca de prazer. Se nos abandonarmos muito literalmente ao fluxo transbordante de nos percebermos esmagados pela grandiosidade da natureza, acabaremos por não sentir o prazer do sublime, mas sim algum outro, que talvez se assemelhe ao êxtase religioso, por exemplo. Além disso, é necessário haver certa maturidade cultural, pois uma criança dificilmente teria a sobriedade e altivez de espírito suficientes para buscar forças íntimas, internas, para se medir com essa infinidade esmagadora.

A natureza, porém, não é sublime apenas em sua grandeza infinita, mas também em sua força. Quando vemos uma tempestade colossal em alto mar, que pode abater em sua fúria inominável qualquer embarcação humana, por maior e mais robusta que esta seja; quando vemos a torrente de lavas vulcânicas arrasando várias cidades que se desintegram instantaneamente soterradas por aquele fogo irrepresável; quando presenciamos um furacão que arrasta a tudo e a todos em seu redemoinho que não conhece nenhum obstáculo, seja ele natural ou humano — em todos esses momentos podemos experimentar o desprazer de não sermos comensuráveis a uma força gigantesca, mas, em um segundo momento, também podemos experimentar aquela reviravolta de nos medirmos espiritualmente com isso que ultrapassa todas as medidas humanas, sentindo prazer.

Esses dois tipos de sublimidade, da grandeza e da força, foram ditos para a natureza. Uma pergunta que intrigou diversos filósofos posteriores a Kant é: poderia a arte também proporcionar esse tipo de prazer? — que ela seja capaz de representar o que vemos como sublime na natureza não há dúvida, tal como em pinturas de paisagens colossais, de maremotos, cordilheiras que se perdem ao infinito etc. A questão mais difícil de responder é se esse movimento contraditório pode ser vivenciado na própria relação com o objeto artístico.

Diversas respostas foram tentadas por filósofos e artistas no século 20. Fazendo um apanhado de pontos principais de algumas teorias, podemos dizer que o sublime é uma categoria aplicável propriamente à arte moderna, que se firmou a partir das vanguardas surgidas pouco antes e pouco depois de 1900. Quando a pintura deixa de ter como seu elemento próprio a representação figurativa da realidade, passando a ser não apenas abstrata, mas incorporando principalmente o feio, o repugnante e o disforme como ingredientes de uma linguagem pictórica múltipla, que extrapola e contradiz em grande medida o belo, temos aí um primeiro momento de negatividade comparável ao desprazer inicial do sublime. Cada uma das pinturas que rompem com nosso desejo de compreensão do que está sendo representado, desafiando o nosso senso estético prévio, ajuda a estabelecer, no conjunto das produções pictóricas, um horizonte que se alarga cada vez mais, incorporando materiais tão divergentes e estranhos a esta arte, que a percepção de ruptura radical de nossa apreensão de tais objetos se mostra análoga à impossibilidade de fazer convergir o infinito da natureza em uma totalidade perceptiva.

Ao contrário da teoria de Kant, que percebia o momento de prazer sublime na equalização do infinito da natureza à profundidade do espírito humano, na arte moderna, segundo Theodor Adorno, a dimensão “positiva” do sublime continua a ser negativa em certo sentido, a saber, na medida em que tomamos consciência do quanto toda essa negatividade trazida à luz nas obras de arte é um testemunho do que foi recalcado, expulso para o subterrâneo da história pelos padrões de racionalidade, de moral, de concepção de produtividade econômica etc. É como se todo o horizonte da beleza e dos ideais de harmonização figurativa fosse rompido para dar acesso a uma verdade mais profunda e substantiva, que, embora nos conecte com o absurdo, o sem-sentido, o feio e o repugnante, nos dá o prazer do reconhecimento de extratos de experiência bem propriamente humanos, afins ao que a psicanálise se esforça em desvelar laboriosamente por meio de sua pesquisa sobre o inconsciente.

12º Congresso Internacional de Estética — Brasil, “O trágico, o sublime e a melancolia”
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, de 13 a 16 de outubro. Informações: abrestetica.org.br/12congresso/


* Professor do Departamento de Filosofia da UFMG e pesquisador do CNPq

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