Terrorismo, religião e identidade: O que está por trás da aquisição de novos territórios?

Acontecimentos atuais não são fenômenos essencialmente religiosos, mas disputa para saber qual é a identidade das pessoas que irão ocupar aquele território conquistado

por Estado de Minas 02/10/2015 12:30

HUBERT MICHAEL BOESL/afp - 9/11/01
O ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, representou uma mudança no conceito de terrorismo (foto: HUBERT MICHAEL BOESL/afp - 9/11/01)
Cristiano Mendes

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas

 

Os atentados do 11 de Setembro, entre outras consequências, trouxeram maior necessidade de qualificação e adjetivação do fenômeno terrorismo. O que antigamente era tipificado apenas por especialistas e estudiosos da área passou a ser exigência comum em todos os textos que tratam do assunto. Dessa forma, nos vimos forçados a especificar a que tipo de terrorismo nos referimos quando nos arriscamos a fazer um julgamento sobre o fenômeno. Terrorismo nacionalista, terrorismo ideológico, terrorismo religioso e assim por diante.

A primeira impressão que esse excesso de adjetivação nos passa é de que os terroristas, dependendo da tipificação à qual se filiam, estariam utilizando o emprego político do terror apenas para ter mais territórios, forçar um governo a se tornar mais de esquerda ou, até mesmo, conseguir a conversão de infiéis para a religião que advogam.

Desconfio, contudo, que o problema seja mais complexo. Algumas teorias de relações internacionais nos ensinam que um importante elemento deve ser levado em consideração nessas análises sobre conflitos, independentemente se estamos diante de um evento que possa ser classificado como terrorista, ou não: a questão identitária e a construção desta mesma identidade pelo contraponto a um suposto inimigo.

A luta por território, por exemplo, não pode ser explicada somente pela vontade expansionista de um povo. O que está por trás da aquisição de novas terras é a disputa para saber qual é a identidade das pessoas que irão ocupar aquele território conquistado. Por exemplo, se o conflito entre Israel e Palestina tivesse conotações somente territoriais, poderíamos supor que exista pouca terra para muita gente. Mas não é isso o que acontece. O próprio governo de Israel tem programas para atrair mais pessoas com ascendência judaica para aquele país. É a identidade de quem vai ocupar o território que realmente importa a ambas as partes. A questão territorial é somente referência para a delimitação sobre qual identidade tem o direito de ocupar qual terra.

O mesmo pode ser dito em relação a conflitos que envolvem interesses econômicos. As ações da Rússia em relação à Tchetchênia, por exemplo. Alguns alegam que a insistência da Rússia em manter o controle sobre a região restringe-se a interesses geopolíticos e econômicos. Entretanto, a insistência russa em manter o controle sobre a região pode ser considerada como, no fundo, identitário. A política de Moscou para evitar a total independência da Tchetchênia tem como objetivo básico favorecer (tanto em sentido político, quanto econômico) a população russa. Ou seja, é a luta para que ganhos sejam concentrados em prol de uma identidade (neste caso, nacional) que gera todo o embate que se arrasta por décadas.

Na Irlanda do Norte, também temos um bom exemplo de como a identidade pode ser a base da maior parte dos conflitos internacionais. Durante boa parte do século 20, os católicos daquela região lutaram contra os protestantes. Os primeiros pressionando a Inglaterra por uma total independência da Irlanda – por meio da anexação da Irlanda do Norte à Irlanda do Sul, já independente –, enquanto protestantes lutavam para a continuidade do pertencimento daquela região ao Reino Unido. À primeira vista, o conflito, bem como as ações do grupo terrorista independentista IRA, podem ser interpretados como religiosos. Entretanto, análise mais profunda vai mostrar que a divisão entre católicos e protestantes, neste caso, serve mais como referência para que todos saibam quem está contra ou a favor da independência total da Irlanda. Tanto é que praticamente não se veem tentativas de ambas as partes na conversão religiosa do opositor. Somente ódio, ressentimento e poucas ações no sentido de aproximações entre fiéis das duas religiões.

No caso do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIS) e de todas as atividades terroristas ligadas ao grupo, a situação parece não se modificar. A utilização de interpretações radicais do Corão que justifique toda a barbárie cometida pelo grupo parece ser póstuma às ações de guerra. As justificativas utilizadas não têm como objetivo primário a conversão ou o convencimento de que determinados princípios religiosos sejam mais corretos que os demais. O que está na base de tudo isto é a filiação identitária dos membros do EIIS. Cooptados geralmente na adolescência, os membros do EIIS aprendem a defender verdades supostamente inquestionáveis, mesmo que para isso tenham que matar seus opositores. Ainda que, de forma esporádica, alguns inimigos declarados do Estado Islâmico consigam se salvar por meio da conversão ao islamismo radical fundamentalista, esses exemplos não chegam a ser regra dentro da política do EIIS. Além do que, essa possibilidade de salvação pela conversão sempre está atrelada às necessidades materiais do EIIS, como, por exemplo, o aumento do número de combatentes ou a presença de mão de obra para trabalhar na administração do Califado.

Ou seja, não estamos diante de um fenômeno essencialmente religioso ou de uma batalha entre verdades espirituais. O que gera e mantém o fenômeno do radicalismo muçulmano, como também acontece com alguns outros grupos religiosos, é a filiação identitária de seus membros. Não é por acreditar em uma interpretação singular do Corão que os membros do EIIS matam seus opositores e, sim, por se sentir membros do EIIS que acreditam nessa interpretação rígida da escritura e, portanto, se sentem no direito de matar quem não pertence a esse grupo.

Além do uso da religião como referência para a delimitação identitária entre quem deve ser considerado amigo e quem deve ser tratado como inimigo temos, também, a própria construção e reforço dessas características identitárias de um grupo (terrorista ou não) pela contraposição àqueles que são considerados como seus opostos.

Explico. Quando o presidente dos Estados Unidos diz que os terroristas não são civilizados, ou que os mesmos são inimigos da liberdade, na verdade, está querendo dizer que os cidadãos norte-americanos são civilizados e defensores da liberdade. Esse processo, muitas vezes inconsciente, utiliza o “não discurso” – ou seja, aquilo que não é diretamente falado – para construir, por meio da contraposição, a identidade do que é ser norte-americano.

Esse processo, entretanto, é sempre recíproco. Se analisarmos os relatos de muçulmanos radicais fundamentalistas sobre o Ocidente, vamos notar que, por meio das mesmas estratégias, estes se apoiam em adjetivações negativas sobre os norte-americanos e seus aliados para construir, por meio da negação tácita, uma imagem ideal do islã.

Como em um jogo de futebol, o que está em questão para os torcedores de cada time não é a real qualidade dos jogadores ou a verdadeira superioridade das estratégias traçadas pelos técnicos de cada lado. Muito menos a verificação objetiva e isenta sobre qual equipe tem mais razão ou seja dona da verdade. A depreciação do outro segue parâmetros mais subjetivos. É embasada em uma filiação identitária prévia que tenta negar qualquer crítica aos seus fundamentos, bem como se afirma pela negação daquilo considerado como seu oposto. Tanto no caso do futebol quanto do Estado Islâmico, a filiação identitária, geralmente induzida já na infância ou na adolescência, não tem bases estritamente racionais ou confessionais.

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