'Palavras cruzadas' narra a busca de uma mulher pelo irmão desaparecido no Araguaia durante a ditadura

Romance de Guiomar de Grammont tem conteúdo político-filosófico, que ministra um volume inédito de informações e descobertas a respeito de um dos episódios mais ocultados pela minoria golpista, militar e civil

por Estado de Minas 02/10/2015 12:30

Fábio Lucas*

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(foto: Divulgação)
Ao depararmos com o romance Palavras cruzadas, de Guiomar de Grammont (Rocco, 2015), abre-se ao leitor um universo de questões relacionadas com o discurso narrativo. Trata-se de obra marcante na forma e nos conteúdos que a autora pretendeu registrar.

Aparentemente, se verifica plena compatibilidade entre o texto e o contexto, de tal sorte que a estrutura cursal/temporal da narrativa flui sem tropeços, como se a autora seguisse o modelo trivial do relato. Forma-se um núcleo central, pontilhado de indagações, a sugerir indevassável mistério.

O conjunto, sequencial, é seccionado em 60 capítulos, todos inteiriços, todavia correlacionados com a totalidade. Cada capítulo acumula informações novas, aguça a curiosidade do leitor à semelhança dos temperos sugestivos da telenovela, ou dos breves motivos-livres das ficções machadianas, nosso ancestral exemplar.

A leitura de Palavras cruzadas é edificante e prazerosa. Na verdade, não significa o fruto de uma escrita espontânea e impensada. Antes, traduz o efeito de árduo e conquistado poder artesanal. Trata-se de um romance de conteúdo político-filosófico, pois, além de envolver o leitor no empenho da protagonista para buscar o irmão desaparecido, seu herói idealizado, ministra um volume inédito de informações e descobertas a respeito de um dos episódios mais ocultados pela minoria golpista, militar e civil, que, simulando representar o povo brasileiro, desencadeou violento extermínio das facções rebeldes.

Desse modo, desdobra-se o vigor afirmativo do romance, já que, contextualizado, lança luzes sobre os eventos romanceados. Três vozes compendiam o teor de verdade dos acontecimentos narrados: a da narradora e a da protagonista, que, juntas, acrescentam a Palavras cruzadas o testemunho de uma geração pequeno-burguesa, emergente no quadro hostil da ditadura, cheia de tópicos críticos e de sonhos. A terceira voz, difusa, tem por sede inumerável grupo de depoentes, visitados e entrevistados, a fim de se recompor o estado de espírito reinante no período ditatorial. É o lado confessional do romance. Revela intensa e árdua pesquisa. Não esgota, entretanto, a extensão desse trabalho. Por exemplo: a narradora se põe a elucidar as técnicas de guerrilha que os rebeldes brasileiros foram adquirir em Cuba, na China, na antiga Tchecoslováquia e até na Rússia. Mostra ainda como os mestres cubanos aprenderam o português, lendo e divulgando Taunay e Euclides da Cunha, estudando a solidão de Hemingway e o suicídio do escritor.

Como a ação trágica do relato se passa no Sul do Pará, teve a autora de delegar à protagonista elementos sobre a flora, a fauna e os acidentes histórico-geográficos da região em que se trava o inútil embate de brasileiros na Guerrilha do Araguaia. Temo que a censura, persistente até hoje, mergulhou no silêncio e no esquecimento.

O leitor haverá de curtir os nomes populares de plantas e bichos utilizados pelas comunidades para alimentação e para usos terapêuticos. Enfim, um belo catálogo da cultura de subsistência do interior do Brasil.

Por último, cumpre-me assinalar os recantos textuais que medram por entre os relatos de pesado cunho dramático. Falo de trechos sublimes do entrecho, nos quais a criação real do discurso transcende o discurso do real. Ou seja: quando a voz da escrita se impregna de sentimentos provindos do campo estético, musical e expressivo das palavras. Inclusive das palavras cruzadas, produto final da larga experiência docente e criadora de Guiomar de Grammont.

Assim sendo, Palavras cruzadas aponta para a maturidade do repertório literário da autora, homologa uma individualidade ímpar. Original e histórica, por introduzir na temática da ficção brasileira o equívoco da Guerrilha do Araguaia, explicitando, no bojo do tema-tabu, o desejo de paz e de extermínio do ódio e da repressão a tudo que se apresente como estranho e diferente, até mesmo exótico. O mito da tolerância e a prática do diálogo deterão, com certeza, as mãos da violência. A permanência da cultura democrática dispara a discriminação e o autoritarismo, o poder sem negociação e o golpismo nepotista. O romance de Guiomar de Grammont insinua o discurso livre e original, reforça o poder da arte literária.

* Professor, crítico, ensaísta e ficcionista. Autor da obra Novas mineiranças (recaída), a ser lançado ainda este ano.

Palavras cruzadas
De Guiomar de Grammont
Editora Rocco
240 paginas
R$ 29, 50 e R$ 19 (e-book)

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