A convite do Pensar, estudiosos discutem relação entre religião, política e filosofia

Professores participam do simpósio 'Religião para a paz ou para a guerra? 'Diálogos transdisciplinares', organizado pela PUC Minas

por Estado de Minas 02/10/2015 12:30

JANEY COSTA
(foto: JANEY COSTA)
Como dois mais antigos elementos constitutivos da sociedade, religião e política se encontram e se separam em vários momentos históricos. Das monarquias absolutistas às teocracias árabes, das bancadas evangélicas a regimes totalitários e fundamentalistas, as fronteiras entre um e outro muitas vezes são tênues. Na quarta-feira, a PUC Minas promove o simpósio 'Religião para a paz ou para a guerra? – Diálogos transdisciplinares', com a presença de pesquisadores de diferentes áreas. O Pensar pediu a quatro professores envolvidos com o evento para discutir o tema.

 

RELIGIÃO E POLÍTICA

Wellington Teodoro da Silva*

A política e a religião são duas realidades estruturadoras do estar humano no mundo. A primeira se efetiva no espaço público com distintos interesses, visões de mundo e ideologias próprias da pluralidade. A religião, por seu lado, funda-se na compreensão e recusa da finitude. O humano, social e culturalmente situado, abre-se para uma realidade universal e universalizante, sagrada e sacralizante. Compreende que o fenômeno vida é repleto de sentidos tão densamente qualitativos que lhe parece um absurdo propor que ela possa ser contida na temporalidade quantitativa da história. Ela ultrapassa o tempo e a história no sentido de uma realidade última, absoluta.

A universidade é pródiga em análises sobre a relação entre a religião e a política. Por um lado, pensa-se o humano como um animal político que convive com o grilhão complicador da religião. Ela se apresenta como uma pervertedora potente da natureza da política. Outros compreendem que a politicidade não consegue fazer-se sem as matrizes religiosas de nossa maneira de elaborar nossa condição no mundo. No limite, podemos falar em religião civil, como o caso dos Estados Unidos, ou de religiosidade laica, como o caso dos partidos comunistas no século 20 e seus desejos de fundar um novo humano e uma nova terra/sociedade.

Importa reconhecer a alta relevância dessas duas realidades humanas ao longo da história. Não é despropósito pensar que elas são incontornáveis no empenho do humano em produzir sentido e significado capazes de fazê-lo produzindo e reproduzindo-se ao longo do tempo. O ambiente acadêmico, que deseje ser fértil campo compreensivo, deverá ser capaz de acolher suas múltiplas possibilidades de investigação e análise.

O percurso da modernidade tornou imperativa a necessidade de compreensão deste que se tornou apenas um único objeto: religião e política. Essas duas realidades distintas apresentam-se como uma síntese que, largamente, existe, efetivamente, como uma coisa única, indissociável no nível dos sujeitos que as experienciam. Isso não recusa o dado de que, no ambiente moderno, a política elabora-se a partir de seus próprios fundamentos e impõe seus termos e seus fins. Entretanto, ela não conseguiu distanciar-se da religião, que lhe confere diversas significações e, por vezes, também diversos destinos.

Um dos grandes desafios do mundo atual é compreender como ambas se deixam sequestrar por imposturas que as aprisionam em fixismos fudamentalistas redutores do outro e de sua dignidade.

* Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas


QUANDO RELIGIÃO E POLÍTICA SE ENCONTRAM

Élio Estanislau Gasda*

Existem diversas possibilidades de encontro entre religião e política.

Em primeiro lugar, política e religião se encontram na pessoa humana. Todos somos seres políticos e seres espirituais. O homem é por natureza um animal político (Aristóteles), é um ser espiritual, aberto à transcendência e à experiência religiosa. As religiões podem inspirar práticas políticas. E a política pode ser um espaço de expressão de valores religiosos. Mas não há um vínculo direto entre religião e poder político. A religião não visa ao poder político e nem cabe a ela elaborar planos de governo. As articulações entre religião e política são mais complexas.

No cristianismo, a sentença de Jesus – “Dar a Deus o que é de Deus. A César o que é de Cesar” (Mt 22, 21), aponta para uma distinção com o poder político. Textos bíblicos também sugerem um encontro pacífico: “Recomendo se ofereçam súplicas, pedidos, intercessões e ações de graças por todas as pessoas, especialmente pelos reis e autoridades, para que possamos viver tranquilos e serenos, com piedade e dignidade” (1Tm 2,1s).

Mas a citação que marcará a história do Ocidente é um extrato da Carta de São Paulo aos romanos: “Que cada um se submeta às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus” (Rom 13, 1ss.). Serviu para justificar o período da cristandade, quando o cristianismo foi oficialmente reconhecido pelo imperador Constantino como religião oficial do Império Romano. A superioridade dos fins espirituais da religião levou à subordinação do Estado. Mas a Revolução Francesa e o liberalismo reagiram frente a este controle da política pela religião assentada na união entre trono e altar. A política revela-se como lugar no qual se realiza a vontade soberana de uma nação. O Estado de direito se define como instituição soberana cujo poder emana do povo (Constituição Brasileira, artigo 1º) e não de divindades metafísicas. As razões de Estado obedecem a lógicas distintas dos fins da religião. A política basta-se a si mesma. O Estado tem autonomia diante da ordem divina.

O encontro entre política e religião na sociedade civil deve dar-se em torno da cooperação na busca do bem comum, na defesa dos direitos humanos e na realização mais adequada da justiça. Porém, muitas confissões religiosas intervêm na política apenas para defender seus interesses. Servem-se da política para fortalecer sua religião, demonizando seus adversários. Nenhuma religião detém o monopólio da ação salvadora de Deus. Ninguém pode reclamar um direito divino de governar. A religião, quando migra para a política, se materializa em religião política que compreende os acontecimentos a partir da sua teologia e sua doutrina moral. Questões políticas só podem ter soluções políticas.

No Brasil, católicos e evangélicos cerram fileiras em torno da Bancada da Bíblia, da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Preservação da Família. Mas o encontro equilibrado entre religião e política acontece no âmbito da laicidade do Estado. A laicidade contém uma visão republicana de governo e, nesse âmbito, descobrem-se as convergências entre discursos políticos e religiosos. Esse encontro sadio com a política é imprescindível para a saúde da própria religião, pois permite a erradicação de qualquer tentativa de instrumentalização de Deus. A religião não pode ser adulterada em instrumento de justificação de práticas políticas.

O futuro da sociedade depende do equilíbrio entre política e religião. O envolvimento político do fiel deve se traduzir no empenho pelo bem comum. A presença positiva da religião se expressa através de seus membros, que assumem suas responsabilidades públicas e buscam coerência entre ser religioso e ser cidadão.

* Professor e pesquisador da Faje

RELIGIÃO E FILOSOFIA
Delmar Cardoso*


Um dos principais nomes da filosofia foi Sócrates, pensador grego que viveu grande parte de sua existência no século 5 a.C. Uma máxima atribuída a ele reza assim: “Só sei que nada sei”. Por conta disso, ele foi considerado o mais sábio dos homens de seu tempo. Sua história não terminou bem. Seu especial tipo de saber – que se tratava de uma douta ignorância – lhe acarretou a condenação à morte em 399 a.C. Um dos motivos para ele ser justiçado tinha um aspecto totalmente religioso: Sócrates foi condenado por causa de sua asébeia (impiedade). Sua cidade, Atenas, com suas leis, não permitiu a Sócrates ter outras divindades a não ser as já conhecidas de todos.

Tiremos uma lição dessa rememoração acerca do desfecho da vida deste grande filósofo grego: religião e filosofia se unem como temas humanos e, ao mesmo tempo, podem ser causa de atritos e contendas e, até, de morte. A razão rege a experiência humana, mas não o faz de modo límpido e claro, como, enquanto filósofos, podemos pretender. A filosofia tem a ver com a razão, mas também não pode deixar de considerar aqueles outros aspectos que, embora não sejam totalmente racionais, se relacionam com a razão humana. Por isso, a relação entre religião e filosofia se impõe como exigência para o filósofo em todos os tempos, inclusive o tempo atual.

Uma das explicações do termo “religião” se relaciona com o verbo latino “religare”, que se aproxima do verbo português “ligar”. Trata-se de uma ligação reforçada que pretende dar conta de um tipo especial de relação que o ser humano estabelece com seres que estão além da natureza.

Será que existem mesmo seres que estão além do mundo natural? No caso da experiência humana, isso é patente primeiramente pelo fenômeno fundador dos grupos humanos: a linguagem. Ela não é propriamente natural, mas existe porque o ser humano transpõe significado e sentido para realidades totalmente naturais e artificiais. A palavra pronunciada esvai-se no tempo, ela some no instante em que é proferida, mas seu sentido e significado permanecem naqueles falantes e ouvintes que participam dela. Por isso, o filósofo se interessa pela linguagem e faz dela seu principal instrumento.

A palavra se mostra como elemento especificamente humano e que o distingue dos outros seres da natureza, a tal ponto que Aristóteles define o homem como “animal possuidor de fala” (zoôn lógon échon). A religião sempre fez parte das “falas” humanas, desde a mais antiga notícia da história da humanidade. Mesmo o fenômeno do ateísmo ainda se inscreve no âmbito do discurso religioso, pois seria mais coerente que o ateísmo nem se quisesse manifestar linguisticamente, pois precisa do termo “deus” para afirmar sua negação.

As religiões – nós sabemos – são muitas e a grande maioria delas tem histórias milenares. A pretensão de todas as religiões consiste num anúncio de salvação sobrenatural. Por causa de um mundo além deste, as religiões são capazes de tudo: apresentam-se como caminho de paz interior e busca de superação da condição terrena.

A história das religiões também se escreve com o sangue. Muitas guerras e conflitos entre grupos humanos têm sua explicação e motivação primeiras na religião. Exemplos disso existem à exaustão na história da humanidade. As religiões matam, punem, castigam. A história das religiões pode ser observada pelo prisma das guerras e conflitos gerados por causa de suas crenças.

A paz se mostra como um dos grandes anseios das sociedades atuais. Mas ela será resultado de um empenho de todos os seres humanos e suas organizações, simples e complexas, em vista da efetiva construção de caminhos para a paz. O filósofo, com sua confiança irrenunciável na racionalidade, participa desse anseio humano e se põe em diálogo com todos, inclusive com os que têm fé religiosa, em vista desta construção de caminhos da paz.

*Professor de filosofia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje)


FUNDAMENTALISMO: SEMPRE RELIGIOSO?

Leonardo Ramos*

O primeiro uso do termo fundamentalismo foi no início do século passado, por conservadores cristãos que se identificavam como aqueles que “voltavam aos fundamentos” – no caso, a Bíblia. Desde então, o termo tem sido empregado desde os anos 1970 para descrever movimentos religiosos conservadores diversos ao redor do globo. Embora alguns autores vejam o fundamentalismo religioso como algo intimamente associado às “religiões abraâmicas” – judaísmo, islamismo e cristianismo –, tal fenômeno na verdade se expressa em várias outras religiões – como no hinduísmo e no budismo, por exemplo.

Uma definição corrente do termo fundamentalismo é a derivação de princípios políticos a partir de um texto considerado sagrado. Mas, além disso, se trata de uma resposta à modernidade e, neste sentido, de um fenômeno eminentemente moderno. Assim, a diferença entre o fundamentalismo e outros movimentos religiosos reacionários se daria em função da diferença entre os inimigos – no caso do fundamentalismo, há uma “hostilidade a aspectos da modernidade”. Ora, tal colocação se aproxima do fato de que, segundo John L. Esposito, um ponto comum aos movimentos fundamentalistas contemporâneos é a busca ou a reafirmação da “identidade religiosa, da autenticidade e da comunidade” – além de um desejo por uma vida pessoal e por uma sociedade mais ordenadas e significativas. Portanto, para os fundamentalistas, a religião não é vista apenas como sistema fechado de crenças que diria respeito apenas à vida privada, mas seria uma forma total de se ver a vida – o que vai de encontro ao consenso liberal ocidental moderno.

Ou seja, mais do que uma interpretação literal do(s) texto(s) sagrado(s), uma característica definidora do fundamentalismo seria sua “suposição enciclopédica”, segundo a qual o(s) texto(s) sagrado(s) possui(em) afirmações e conhecimentos verdadeiros e infalíveis acerca de todas temáticas possíveis, podendo assim ser considerado(s) guia infalível de conduta e regulação para todos os aspectos da realidade.

Na medida em que parte de tal crença, o fundamentalismo tende a construir uma identidade imóvel, anulando e ignorando as relações existentes entre as diferentes culturas. Em outras palavras, o fundamentalismo não é capaz de lidar com a questão da diferença, da diversidade e da tolerância. Consequentemente, nota-se que o do fundamentalismo religioso gira em torno de sujeitos, de diversas religiões, que operam a partir de uma perspectiva que ignora a riqueza da realidade e tenta reduzir tal realidade apenas a uma relação entre “fiéis” versus “infiéis”.

Contudo, resta ainda uma questão fundamental: não basta, na complicada relação entre religião e política, condenar o fundamentalismo e simplesmente reafirmar o consenso liberal ocidental moderno de que a religião é uma questão da vida privada e, enquanto tal, não deve interferir na vida política. Fazer isso significa, no limite, definir a sociedade liberal moderna a partir de sua oposição ao fundamentalismo e ignorar o fato de que a dimensão religiosa é um dos aspectos constitutivos do ser humano – e, neste sentido, exercendo influência significativa em suas relações sociais, culturais e políticas. Negligenciar essa questão significa, no final das contas, ser incapaz de discutir os limites e as possibilidades de construção de uma sociedade realmente plural e tolerante.

* Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas

 

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