Capital da República Tcheca, Praga moldou a visão de mundo de Franz Kafka

Apesar de não ser mencionada nos livros de seu maior escritor, a cidade impregnou a obra do mestre

por Pablo Pires Fernandes 25/09/2015 09:22
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Nas ruas de Praga podem ser vistas diversas referências ao escritor (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Praga, cidade natal do escritor Franz Kafka (1883-1924), nunca foi mencionada diretamente em seus livros. O escritor cita, sim, a capital tcheca em cartas e diários. E a descreve ao mesmo tempo com afeto e principalmente com amargura. A obra de Kafka é particularmente universal por deixar em segundo plano as referências de tempo e espaço. Mas, como qualquer artista, o espírito do tempo e o ambiente em que viveu deixam marcas em seu trabalho. A Praga do início do século 20 impregnou a obra do mestre.

Hoje metamorfoseada em um centro turístico, em 1915, ano em que a obra-prima A metamorfose foi publicada, Praga vivia contradições e fervilhava. Centro intelectual e importante polo do império austro-húngaro, rota de ligação entre Ocidente e Oriente, a cidade deixava de ser um pequeno centro dominado por uma elite de língua alemã e assistia ao crescimento de uma classe proletária tcheca, que questionava a estrutura vigente.

O fato de Kafka ser judeu e pertencer à classe mais favorecida também são elementos decisivos à sua visão de mundo. Como esclarece Modesto Carone, o maior especialista brasileiro sobre o escritor, em seu artigo Nas garras de Praga, da Revista da USP, “Kafka nunca deixou de definir a si mesmo como alguém que pertencia a esse triângulo das Bermudas centro-europeu: à minoria alemã pela cultura e pela língua em que escrevia, à população tcheca cujas aspirações legítimas apoiava e aos judeus com quem tinha os laços de origem”.

O escritor quase não saiu de Praga. Com raras viagens ao exterior e internações em sanatórios, foi nas ruas da cidades, nos cafés e hotéis, pontes e praças, clubes e becos que respirou seu dia a dia. As transformações modernizantes alteravam a imagem da urbe, que derrubava construções medievais para abrir ruas largas e construir casarões de bela arquitetura – que atualmente formam um conjunto de rara beleza estética e apelo turístico. Mas o aspecto labiríntico, ainda preservado, certamente deixou traços nas palavras de K..

Entre um universo rígido da cultura germânica em franca decadência e a inevitável vaga modernizante nacionalista, Kafka simplesmente se refugiou na literatura. Expressou inúmeras vezes sua necessidade de estar só, refletindo a dificuldade de lidar com a dualidade a seu redor. A então capital da Boêmia era, no dizer de Carone, “um lugar de desabrigados, onde, no limite, ninguém conseguia garantir para si mesmo um lar definido e muito menos definitivo”. A inquietude existencial e o sentimento de “desenraizamento” particularmente aguçado pela Praga daquele momento, na visão de Carone, estão presentes e impregnados na obra de Kafka.

O itinerário do escritor é circunscrito a poucos quarteirões. A Praça da Cidade Velha e suas imediações foram referenciais na vida de Kafka. Nasceu ali, viveu boa parte de sua vida ali. Naturalmente, presenciar a intensidade social citadina diante de sua porta foi decisivo para a constituição de sua visão de mundo. A dificuldade de lidar com o exterior, sua timidez e a rigidez da autoridade paterna, porém, impulsionaram Kafka a se refugiar na literatura. Essa quase fuga ou rejeição misantropa o fizeram sofrer. No entanto, foi desse sentimento que nasceram uma das obras literárias mais importantes do século 20.

Reprodução
(foto: Reprodução)
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Carta ao pai
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 1997

A metamorfose
De De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 2000

Lição de Kafka
De Modesto Carone
Companhia das Letras, 2014

O castelo
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 2000

O processo
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 1997

Um médico rural
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 1999

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