O fato de Kafka ser judeu e pertencer à classe mais favorecida também são elementos decisivos à sua visão de mundo. Como esclarece Modesto Carone, o maior especialista brasileiro sobre o escritor, em seu artigo Nas garras de Praga, da Revista da USP, “Kafka nunca deixou de definir a si mesmo como alguém que pertencia a esse triângulo das Bermudas centro-europeu: à minoria alemã pela cultura e pela língua em que escrevia, à população tcheca cujas aspirações legítimas apoiava e aos judeus com quem tinha os laços de origem”.
O escritor quase não saiu de Praga. Com raras viagens ao exterior e internações em sanatórios, foi nas ruas da cidades, nos cafés e hotéis, pontes e praças, clubes e becos que respirou seu dia a dia. As transformações modernizantes alteravam a imagem da urbe, que derrubava construções medievais para abrir ruas largas e construir casarões de bela arquitetura – que atualmente formam um conjunto de rara beleza estética e apelo turístico. Mas o aspecto labiríntico, ainda preservado, certamente deixou traços nas palavras de K..
Entre um universo rígido da cultura germânica em franca decadência e a inevitável vaga modernizante nacionalista, Kafka simplesmente se refugiou na literatura. Expressou inúmeras vezes sua necessidade de estar só, refletindo a dificuldade de lidar com a dualidade a seu redor. A então capital da Boêmia era, no dizer de Carone, “um lugar de desabrigados, onde, no limite, ninguém conseguia garantir para si mesmo um lar definido e muito menos definitivo”. A inquietude existencial e o sentimento de “desenraizamento” particularmente aguçado pela Praga daquele momento, na visão de Carone, estão presentes e impregnados na obra de Kafka.
O itinerário do escritor é circunscrito a poucos quarteirões. A Praça da Cidade Velha e suas imediações foram referenciais na vida de Kafka. Nasceu ali, viveu boa parte de sua vida ali. Naturalmente, presenciar a intensidade social citadina diante de sua porta foi decisivo para a constituição de sua visão de mundo. A dificuldade de lidar com o exterior, sua timidez e a rigidez da autoridade paterna, porém, impulsionaram Kafka a se refugiar na literatura. Essa quase fuga ou rejeição misantropa o fizeram sofrer. No entanto, foi desse sentimento que nasceram uma das obras literárias mais importantes do século 20.
Carta ao pai
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 1997
A metamorfose
De De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 2000
Lição de Kafka
De Modesto Carone
Companhia das Letras, 2014
O castelo
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 2000
O processo
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 1997
Um médico rural
De Franz Kafka
Tradução de Modesto Carone
Companhia das Letras, 1999