O ator Paulo José recorda bastidores da filmagem de O padre e a moça em Minas

Ator protagonizou a produção dirigida por Joaquim Pedro de Andrade ao lado de Helena Ignez

por Pablo Pires Fernandes 11/09/2015 00:13
Cristina Horta/EM/D.A Press
Paulo José protagonizou 'O padre e a moça' em 1965 (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
“Arrume as malas e vem pra Minas”, disse o cineasta Joaquim Pedro de Andrade para Paulo José. Assim, de supetão, foi feito o convite para o ator fazer seu primeiro papel no cinema. Com experiência no Teatro de Equipe, em Porto Alegre, e no Teatro de Arena, em São Paulo, o ator contou com o acaso. “Estava no Rio de Janeiro quando soube que o Joaquim Pedro estava me procurando”, conta. Depois soube que o artista plástico Luiz Jardim, escalado para o papel principal de O padre e a moça, foi diagnosticado com hepatite nas vésperas das filmagens. “O Joaquim nunca tinha falado comigo e ele me colocou que era uma aventura no escuro e que eu ia pra São Gonçalo porque já estava começando a filmar e que eu iria fazer o papel do padre”, relata Paulo, sentado no sofá de sua casa, no Alto da Gávea, no Rio de Janeiro.

Entre livros, objetos de arte popular, obras de arte e muito verde circundando a casa, Paulo fala com carinho da experiência, puxando a memória enquanto cães e gatos aparecem de quando em quando pedindo um afago. “Foi tudo no sufoco”, diz com certo humor, recordando ter pensado então: “Isso só podia acontecer comigo”. Ao chegar a São Gonçalo do Rio das Pedras, cidadezinha barroca isolada no alto da Serra do Espinhaço, sentiu-se constrangido. “Ninguém me conhecia e eu estava com o papel principal masculino. E eu fui apresentado a todo mundo ali na hora das filmagens.”

Nos primeiros momentos de entrosamento com a equipe, o diretor pediu a Paulo que vestisse a batina. “Vesti a batina e ele ficou meio decepcionado. Acho que ele imaginava um padre mais padre”, afirma, lembrando-se de que Joaquim fez o comentário de que a batina “era grande demais pra mim”. “E eu me sentia como se eu fosse pequeno demais para aquela batina. Mas se chegou à solução, mais simples, de que se devia cortar a batina. E assim foi feito. Três dias depois já estávamos filmando.”

Com pouco tempo, Paulo deixou de lado o constrangimento para se dedicar à interpretação, e a batina, tornou-se uma espécie de uniforme. “Eu andava sempre de batina, então as mulheres me pediam a bênção e eu estendia a ponta dos dedos e dava a bênção”, relata, rindo ao descrever a cena vivida há 50 anos. Paulo conta que tinha um harmônio em uma das casas do vilarejo. “Eu tocava e as mulheres vinham ouvir, chegavam perto. Eram coisas litúrgicas. Eu era um padre pra elas”, diz. Ao cantarolar hinos que evocam imagens religiosas, o ator – hoje com 78 anos e portador do mal de Parkinson – se engrandece e, por um instante, parece encarnar o padre do filme.

Arquivo Revista O Cruzeiro / Divulgação
Paulo José e Helena Ignez em cena de 'O padre e a moça' (foto: Arquivo Revista O Cruzeiro / Divulgação)
Interpretação


Personagem complexo e intimista, o padre vive a extrema angústia e o dilema dilacerante diante do encanto despertado pela moça Mariana, interpretada pela bela Helena Ignez. Paulo conta que, para expressar o tomento interior do personagem, ele trabalhava por substituição. “Era fácil, tentava lembrar alguma coisa, não necessariamente coisas do personagem, coisas minhas mesmo.” Em uma cena, o padre, no auge da angústia, é ironizado pelo farmacêutico – vivido por Fauzi Arap: “O padrezinho vem ver a moça, está apaixonado por ela”, caçoa o farmacêutico. “Nessa cena, eu me lembrava de um poema do Drummond chamado Resíduo, ficava longe de tudo, em outro lugar”, relata, recitando: “De tudo fica um pouco...”.

As cenas da caminhada, depois que o padre e a moça fogem do vilarejo, são filmadas de vários pontos de vista, muitas vezes com o padre de costas, o que evidencia a falta de rumo dos personagens. “A caminhada era lenta, marcava os pés no cascalho, ficava ouvindo os meus passos, era meio hipnótico. O que eu podia fazer era não explicitar nenhum sentimento ou fazer cara de alguma coisa. Manter uma máscara. Dentro, dentro, às vezes um olho. Você não sabe o que ele está pensando, né? E ele parece que está cheio de minhocas na cabeça”, descreve o ator, antes de pausar a conversa para um café e um cigarro.

Para Paulo, O padre e a moça é  misterioso, mas, antes de tudo, “um filme mineiro”. “Cada um guarda um segredo. O padre tem um segredo que foi passado a ele pelo padre Antônio. O Honorato, que era o velho da cidade e pai de criação da moça, dormia com ela, mas isso não é dito claramente, não se sabe se é verdade ou não”, explica, evidenciando a ambiguidade que a obra carrega.

O ator se lembra com afeto dos moradores de São Gonçalo. Vários participaram do filme e desempenham papel importante na trama. “A cidade era uma cidade morta, vazia, parte das casas estava fechada. Moravam mesmo as mulheres, meio velhas, as papudas, que faziam as beatas no filme”, lembra, referindo-se a algumas moradoras portadoras de bócio. “Elas faziam no filme o papel das fúrias, as helenas, as fúrias gregas”, destaca Paulo em alusão à estrutura dramática da tragédia clássica.

Cidade fantasma

A cidade, que havia vivido o apogeu com a exploração de diamantes durante o século 19, estava praticamente abandonada. “A farmácia, que foi usada como cenário, era uma farmácia fechada. Tinha frascos de remédio com validades vencidas há anos, cheios de mofo, parados nas estantes. Tinha uma subdelegacia, fechada também”, descreve Paulo. Ele conta que, para a realização do filme, a produção e o Exército reconstruíram a ponte sobre o rio que divide a cidade e separa as duas igrejas matrizes. “A grande satisfação da cidade foi poder voltar a fazer a procissão das duas igrejas que se encontrava na ponte do rio. O Cristo com a cruz vinha de uma igreja e a Nossa Senhora vinha da outra e trocavam lugares. Era a grande festa da região.”

Paulo José conta que, além da ponte, a produção também construiu um banheiro. “Fizeram uma fossa, colocaram um vaso, num prédio de alvenaria, era uma casinha, chamava casinha. Era a única da cidade”, relata, dizendo que o sucesso era visitar o vaso sanitário. “E o comentário na cidade era: ‘Aquela bundinha vai sentar neste vaso?’. Era uma coisa excitante”, afirma com um toque de safadeza, que iria explorar tão bem em Macunaíma, filme em que a parceria com o diretor Joaquim Pedro foi repetida.

Durante três meses a convivência com a população foi diária. A equipe ocupava uma mesma casa, mas a sensação de isolamento às vezes tomava conta da trupe. “Bebia-se muito. Mineiro bebe muito”, recorda. Distante de Diamantina, dois jipes do Exército ajudavam no transporte da equipe e do equipamento. No dia de folga, aos domingos, os veículos militares buscavam a equipe pela manhã, conduzia-a a Diamantina, para retornar à noite. “A grande aventura era chegar a Diamantina porque não tinha estrada, tinha pedregal, era só pedra”, descreve. A visita à cidade polo da região era motivo de satisfação. “Em Diamantina, tinha restaurante, tinha sorvete, picolé... e telefone”, zomba o veterano ao repassar os perrengues do início de sua carreira no cinema. Paulo nunca retornou a São Gonçalo e diz que se deve uma visita à locação do filme. Mas, assim como as imagens, as lembranças permanecem: “E foi bom demais, foi maravilhoso.”

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