Cientista político Felipe Schiefler analisa a postura ambígua de dom Pedro

Imperador articulou apoio para o projeto de independência com algumas províncias, incluindo Minas Gerais, mas reprimiu violentamente quem ousou se opor a ele

por Felipe Riccio Schiefler 04/09/2015 10:00
ARQUIVO/BIBLIOTECA NACIONAL
(foto: ARQUIVO/BIBLIOTECA NACIONAL)
Um império construído nas bases da negociação política? Ou por meio da força, aniquilando brutalmente movimentos alternativos? No processo de independência, que durou pelo menos até meados do século 19, teve de tudo – e muito. O processo de independência, visto das províncias, teve encaminhamento distinto. Construção de alianças e o emprego da força tiveram igual importância nessa trama de manter unido todo o antigo território português na América.

O grito de “Independência ou morte”, às margens do Ipiranga, não reverberou da mesma maneira nas diferentes províncias. Havia, decerto, lugares onde as coisas já estavam mais favoráveis a dom Pedro no 7 de setembro, como é o caso da província de Minas Gerais. Em outras, todavia, as hesitações ainda eram evidentes, como no caso de Pernambuco.

Em 7 de setembro de 1822, a ideia de construir um grande império com toda a região que correspondera à América portuguesa era um sonho factível apenas na cabeça de poucos burocratas que, em grande medida, tinham passado pela Universidade de Coimbra. Ademais, muitos deles, durante o período joanino, estiveram em contato com dom Rodrigo de Souza Coutinho, importante ministro de dom João, principal mentor dessa utopia.

É assim que, com a volta de dom João VI a Portugal, a regência de dom Pedro se via, de início, totalmente isolada. As províncias pareciam virar as costas para o jovem regente. Em cartas enviadas ao pai, reclamava constantemente do parco apoio que lhe era conferido. Não restava dúvida, era preciso agir. Construir alianças, ganhar apoio para além do Rio de Janeiro.

As juntas provinciais, formadas com o advento constituinte em Lisboa, anos antes, arrogavam-se da autonomia que lhes fora regalada. Até a junta de Vila Rica, na capital da província mineira, mostrava certa indiferença em relação ao príncipe nos idos de 1821. A um pedido de apoio militar, enviado pelo Senado da Câmara do Rio de Janeiro, para resguardar a cidade de um possível ataque português, a junta respondeu que, naquele momento, não tinha condições de socorrer a antiga capital imperial. Algumas câmaras municipais da província reagiram em desacordo com a junta, acenando, assim, para dom Pedro.

Aconselhado por José Bonifácio, o regente preparou uma comitiva e foi em direção às Minas em janeiro de 1822. Para lidar com os diferentes anseios e aglutinar os interesses em torno de si, dom Pedro mesclou, em sua atuação, tradição política com certa dose de novidade. Na chegada às vilas mineiras, era recebido envolto em ritos nos quais tambores e tiros soavam, nas “festas de entrada”. No caminho do Rio a Minas, foi e voltou pela rota dos tropeiros. No itinerário, distribuiu terras do Estado para proprietários que, anos mais tarde, teriam centralidade na economia cafeeira da província. Comarcas mais ao norte, como Vila do Príncipe, não puderam ser agraciadas com a presença do príncipe. Ainda assim, enviaram representante para celebrar o beija-mão e confirmar a adesão da vila.

Por outro lado, os ventos do constitucionalismo levavam a perspectivas contratuais entre os integrantes das câmaras e dom Pedro, sem que, com isso, ficasse de fora toda a ritualística caudatária do antigo regime. Com o apoio dos camaristas ao regente, a junta provisória viu seu poder esfumar-se. Num beco sem saída, em 19 de abril de 1822, a junta aderiu a dom Pedro. O brigadeiro José Maria Pinto Peixoto, um dos líderes da junta, que, dias antes, tivera seus distintivos arremessados ao chão pelo próprio regente, agora era saudado por sua “boa conduta e bons serviços”. Seguindo a velha lógica de bater e assoprar, dom Pedro tecia os fios da boa conciliação, levando o brigadeiro na comitiva de retorno, para prestar serviços de maior valor “na corte do Rio de Janeiro”.

Em outras regiões, o projeto encabeçado pelo Rio de Janeiro encontrou maiores resistências. É o caso de Pernambuco, onde o primeiro Bragança somente colocaria os pés em fins do decênio de 1850, na viagem de dom Pedro II à província. Responsável por instaurar uma república nos anos finais do período joanino, as chamas do radicalismo não pareciam apagadas por aquelas bandas entre de 1822 e 1824. Por duas vezes, a composição da junta provisória da província foi desfavorável àqueles que se articulavam em torno do regente.

Para complicar ainda mais, dois jornais publicados na província colocavam de cabelos em pé os burocratas que gravitavam em torno de dom Pedro: a 'Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco', do baiano Cipriano Barata, e o 'Typhis Pernambucano', do frade carmelita Frei Caneca. Ambos apontavam na direção de um império federativo, no qual o pacto constituinte deveria levar em conta que as províncias se encontrassem em pé de igualdade para deliberarem as bases políticas do novo império em uma Assembleia Constituinte. A soberania residia, para eles, nas províncias. Caso o pacto não lhes conviesse, nada feito. A formação do grande império não era o carro-chefe de suas ideias, apesar de não ser uma opção descartada de antemão.

Na pena desses dois autores, os ventos radicais do iluminismo ganhavam ares adaptados aos problemas políticos vividos por aqui. Barata era um crítico contumaz da sociedade de corte. Para ele, a transmigração bragantina apertara ainda mais o jugo da escravidão que viviam as colônias. Com mais de “18 odiosos tributos”, as receitas das províncias do Norte foram chupadas para a construção de uma corte onerosa instalada no Rio de Janeiro. Por isso, segundo ele, era preciso estar alerta para que o regente não tomasse o mesmo caminho. Havia claros indícios nesse sentido. O investimento na distribuição de mercês e condecorações, como na recém-criada Ordem do Cruzeiro do Sul, foi prontamente contestada pelo baiano.

Na visão desses radicais, o futuro não poderia emendar o passado. A condução política por meio de práticas do antigo regime, portanto, não era bem-vista. Frei Caneca levantou-se contra a prática de aclamação de dom Pedro por meio da anuência de câmaras municipais, tal como ocorrera em Minas Gerais. Segundo ele, um pacto legítimo não se formaria dessa maneira. Somente o debate constituinte garantiria a fundação de um império. E, para isso, Barata e Caneca não tinham dúvidas: a antiga capital deveria abrir mão dos seus privilégios. Não se poderia formar um império para “meia dúzia de fidalgos de Minas, Rio e São Paulo”. Para Barata, essas três províncias encontravam-se “contaminadas”.

Em uma tiragem, endereçava seus apelos às mulheres do Rio de Janeiro, únicas que, nos idos de 1823, podiam alertar os homens da província sobre os perigos do despotismo. A resposta das mulheres cariocas nunca chegou, mas leitoras da Paraíba responderam ao chamado numa carta enviada à Sentinela. Elas mostravam-se leitoras do periódico e se diziam “alertas” em relação às tramoias aos “entes tão miseráveis que, criados com o leite do velho governo,” buscavam a perpetuação do despotismo. A troca epistolar entre Barata e as “valorosas espartanas da Paraíba”, numa cultura altamente patriarcal, chamou a atenção dos adversários do baiano, que, de maneira desdenhosa em um panfleto que circulou na época, deram-lhe a alcunha de “Príncipe do Brejo”, em alusão ao local de onde vinham as cartas das mulheres, a Vila do Brejo.

Os temores de Barata se concretizaram: a Assembleia Constituinte foi fechada, e o que restou foi uma Constituição outorgada por dom Pedro em 1824. Pernambuco, mais uma vez, rebelou-se contra o Império. Barata foi preso ainda em 1823, permanecendo o Primeiro Reinado inteiro atrás das grades. Para Frei Caneca, o destino foi trágico. Capturado, foi executado.

Felipe Riccio Schiefler é doutorando em ciência política pelo DCP-UFMG. Membro do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) e do Grupo Opinião Pública

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