Há muito, o funk carioca ocupou seu espaço na cultura brasileira. De fenômeno restrito à periferia carioca, os bailes alçaram outras esferas, espalhando sua música, suas expressões e seus modismos para fronteiras muito distantes das comunidades onde surgiram. O próximo passo, porém, é inédito. O Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, que vai inaugurar sua nova sede em meados de 2016, terá uma sala especialmente dedicada ao funk.
O espaço contará com uma grande tela e potentes caixas de som que buscarão transcriar a atmosfera febril de um baile funk. Assim, a cultura da periferia, a estética e a história de milhões de marginalizados poderão ser admirados em uma espécie de boate no prédio de quase 10 mil metros quadrados em plena Avenida Atlântica, em Copacabana.
Depois, encarregou as diretoras Mini Kerti e Carolina Jabor, da Conspiração Filmes, para conceber e formatar o vídeo. “É um trabalho de construção de linguagem, com música, cores e energia”, explica Mini Kerti, afirmando que não é um documentário histórico. Segundo ela, a obra busca criar uma experiência sensorial a partir de uma narrativa que toque as diferentes fases que o movimento percorreu.
O professor Carlos Palombini, musicólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), há anos pesquisa sobre o funk e é autoridade no assunto. “É o primeiro gênero musical brasileiro de música eletrônica dançante”, atesta. Ele explica que, em determinado momento, funkeiros cariocas tomaram uma base rítmica eletrônica norte-americana – a icônica 808 volt mix – e começaram a manipulá-la, incorporando elementos próprios da cultura nacional: cantigas de roda, atabaques, pontos de terreiro, percussões afro-brasileiras e vocais sobrepostos. “Nesse contexto, começa-se a criar uma espécie de síntese afro-panamericana, pela combinação do afro-norte-americano com o afro-brasileiro”, aponta o estudioso, que vê o funk como “uma manifestação da diáspora africana no Brasil”.
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“O funk carioca fala de uma maneira muito positiva e muito própria dos territórios favelados, mostrando que cada favela tem sua identidade própria e não se pode falar de favela de um modo geral”, explica a antropóloga Andriana Facina, professora do Museu Nacional (UFRJ).
Fátima Cecchetto, antropóloga do Institiuto Oswaldo Cruz (IOC-RJ), destaca que o funk, como qualquer movimento cultural, não é algo fechado. “O funk é um estilo que se renova a cada momento, tem um apelo em relação à dança que une as pessoas. A sociabilidade é muito intensa e importante do ponto de vista do convívio”, avalia.
Facina também ressalta o dinamismo da cultura funk, que, atenta às tendências, “dialoga com uma realidade mais imediata, seja aquela presente nas favelas, seja o assunto que está circulando na sociedade”. Ela aponta que essa cultura da periferia “inventa moda, que tem a ver com vestimenta, linguajar”. E, mais que isso, aponta que “cria uma linguagem, uma arte, uma estética para falar dessas realidades”.
Por ser a expressão viva dos jovens da periferia, é natural que as letras e temas espantem muita gente que não conhece a realidade das favelas. Os funks proibidões, que falam de sexo e de tráfico de drogas, vocalizam o cotidiano de parte de uma juventude, mas são apenas uma das muitas variantes do gênero.
“Existe uma certa exaltação da vida bandida, que cria mitos de heroísmo local, existe uma sexualização, o funk capta a ambiguidade da vida social e das motivações dessa juventude”, coloca Cecchetto. O cinesta Emílio Domingos destaca que a imagem do funk ainda está muito atrelada ao morro e ao tráfico de drogas, apesar de ter conseguido alcançar outras camadas sociais. “Pode haver tráfico no morro, mas 99% das pessoas que vão aos bailes não têm nada a ver com o tráfico”, relata.
A pesquisadora do Museu Nacional aponta também que “o funk é uma das músicas que colocam mais explicitamente a questão do feminismo e da igualdade de gênero – em termos de música de massa –, da diversidade de gênero”. Ela cita o exemplo de uma MC travesti e da figura da Lacraia, uma figura transgênero, que são amplamente aceitos pelo público. “Isso é algo extremamente avançado e vanguardista que a gente não vê em outros gêneros musicais populares. Isso mostra também o quanto o funk está ligado a demandas de minorias, a movimentos sociais importantes”, aponta Facina.
“A Secretaria de Segurança Pública trata o assunto como questão de polícia e não é questão de polícia, é um caso de cultura. Tem que haver diálogo, um meio-termo. A polícia tem que entender a importância daquele espaço como espaço de lazer. Se você reprime, você está proibindo uma cultura de florescer, dificulta questões econômicas de muita gente, estamos matando uma cultura que está há 45 anos aí gerando um monte de coisas”, diz o cineasta.
Domingos diz que o funk é uma possível porta para o diálogo entre os jovens da periferia e o Estado. Adriana Facina também destaca o papel do movimento, ao afirmar que “o que o funk está fazendo para esses jovens, nenhuma instituição relevante está fazendo”. E denuncia a repressão: “A gente tem uma situação de extermínio dessa juventude negra. Os índices de morte entre jovens negros periféricos nos colocam em níveis de uma guerra, então, esses jovens têm que ser ouvidos. Ouvir essa voz numa forma musical tão potente e tão massiva é algo urgente”.