Ponto de fuga

por 21/08/2015 00:13

O domingo é um velho cego que lê solidões em braile

 

Está tudo aí
O rancor da manhã com o céu nublado
Os pombos que se escondem no forro da capela sistina pintada pelo Michelangelo drogado do bairro
Está tudo aí
As moedas para comprar fósforo e pão que o diabo amassa todos os dias e risca seu intestino com o café diário amargo da indiferença
Está tudo aí
A puta que escreve mal e faz carinho no cão que morderá seu calcanhar
O lixo revirado na esquina perto da macumba com bastante farofa, velas vermelhas e fotografias 3x4
Está tudo aí
Como diz o pastor da televisão de olhos azuis apontando em sua direção:
“A pomba gira manifestada na sua mãe com diabetes!
O Exu tranca rua gargalhando no câncer do seu pai!”
Está tudo aí
Nas feridas coçando na fissura do teu corpo
No ódio dos palermas que verão mais uma queda
Porque todos querem vê-lo fodido como uma cadela arrombada por um mendigo embaixo da marquise
Está tudo aí
Neste feriado de deus dormindo na rede da maldade humana
Neste poema cheio de pus que ninguém curtirá na internet e na esperança do seu único sapato furado servindo de penico para cocô de ratos
Está tudo aí
Na dor deste cigarro que tragas como se caminhões tombassem na avenida da tua artéria coronária
No coração engordurado bombando desamores
Nos apertos de mão cheios de desdém nos bares ocultos da inveja alheia
Está tudo aí
No travamento do rim das piores emoções
Na trombose da indiferença dos artistas mortos vangloriados por bacanas em salões de vernissagens
Nesta taça de vinho cheia de aroma de pesadelo e corrupção
Está tudo aí
Mas você permanece cristão
Prefere jogar todas as oportunidades fáceis que rastejam como serpentes no ralo da pia
E escrever como se fosse um santo
Está tudo aí
O domingo é um velho cego que lê solidões em braile.

 

O amor faz da gente um escravo
de Uganda a serviço de Idi Amin

 

O silêncio da paz está no seu peito
Quando deito minha cabeça nele de madrugada
Quando deito de crimes que cometi pela manhã
Defendendo estelionatários no fórum de São Paulo
Só Franz Kafka sabe o quanto é doloroso ser advogado
Nesta cidade empestada de psicopatas
Nesta metrópole que se mata por 1 real
Te vejo nua
Resplandecente
Lendo os poemas daquele búlgaro logo pela manhã
Tomo banho
Visto meu terno cheio de sangue
Você diz “passa na farmácia e compra pílulas novas. Minha menstruação atrasou. Você precisa gozar fora esse mês. Um bebê agora foderia tudo”
Encho minha bolsa com processos pesados
Como o do maníaco que matou 27 médicos do SUS
Por vingança

Por não terem atendido seu filho com asma numa tarde chuvosa de domingo
Você pisca da cozinha
Manda beijos
Pede que pegue sua mãe no salão de beleza
E leve para casa da sua tia
Só deus sabe o quanto odeio sua mãe
Relevo
Passo a terceira marcha no meu Honda Civic
Ignoro as besteiras que ela fala com as unhas pintadas de vermelho e a cabeça cheia de bobes imitando dignamente a dona Florinda
Canto mentalmente Belchior enquanto sua mãe não para de falar num casamento chique
Poderia chutá-la agora mesmo do carro, mas estragaria tudo
Não nego as coisas que minha mulher pede
O amor faz da gente um escravo de Uganda
A serviço de Idi Amin.

 

Slowcore

Acordei agora de um pesadelo amarelo morto
acordei agora com o peito gélido
onde você passa noites inteiras
esquiando com seu walkman azul
pendurado no bolso do jeans
cantando músicas daquela banda slowcore
que você tanto ama e até pregou
um pôster na parede do banheiro
Acordei agora para escrever algo bonito
que lembre teu sorriso marcado
feito gado premiado dentro do meu coração
Acordei agora para fumar
então abri a janela do quarto e pétalas de girassóis
escaparam da minha boca
todos os cães da cidade
latem a palavra “saudade”
dentro de nuvens HQ.

 

Aquele bar da rodoviária tocando Wando

Nem quando tudo parecia perdido
meus olhos amanhecidos num bar da rodoviária
tocando Wando
nem quando tudo parecia perdido
a polícia dando sinais de alerta
repassando minhas características na radiopatrulha
nem quando tudo parecia perdido
meu peito na chuva chiando pneumonia
nem quando tudo parecia perdido
deixei de pensar no teu sorriso
nem quando tudo parecia perdido
deixei de escrever poemas
em espelhos de motéis fuleiros
nem quando tudo parecia perdido
deixei de dizer para putas de rua
que meu coração
tem sangrado teu nome.

 

 

Diego Moraes
Poeta e escritor, 30 anos, nasceu em Manaus. Um dos idealizadores do festival literário na internet Flipobre, publicou os livros A fotografia do meu antigo amor dançando tango (Barteblee, 2012), A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (Barteblee, 2013) e Um bar fecha dentro da gente (Douda Correria, Lisboa, 2015).
 

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