Entre o sonho e o desencanto

Não somos estúpidos, é a falência do sistema que fez com que perdêssemos o hábito de pensar, o hábito de criticar, o hábito de contestar, o hábito de planejar o amanhã

por Nahima Maciel 21/08/2015 00:13
fotos: Editora Record/Divulgação
(foto: fotos: Editora Record/Divulgação )
Nélida Piñon se internou em Congonhas, no interior de Minas Gerais, para escrever


A república dos sonhos. Ficou um mês enfurnada em um quarto de pensão do qual podia ver,
a qualquer movimento da cabeça, os 12 profetas esculpidos por Aleijadinho. Isolada, proibiu visitas dos amigos e cortou contato com o Rio de Janeiro, onde morava. Trabalhava durante 15 horas por dia. “Mas assim, numa obsessão, vivendo um estado maravilhoso”, conta. “Era fé pura, uma fé ardente, ígnea. Para mim, é fundamental a febre da linguagem.” Não saiu de lá com todas as 700 páginas do romance, mas voltou para a capital fluminense com o personagem Madruga amadurecido. A história do imigrante pobre que deixava a Galícia (Espanha) para “fazer a América” era familiar a Nélida, neta de Daniel, enviado ao Brasil aos 12 anos em companhia de três irmãos para escapar de uma guerra travada pela Espanha no Marrocos. O romance ficou pronto e foi publicado em 1984. Agora, 30 anos depois, ganha edição comemorativa em capa dura.


Autora de 19 livros, sendo 10 romances, a escritora chega aos 78 anos convencida de que o país não acompanhou a grandeza dos homens que já abrigou. “Vou embora, vou morrer sem ter visto o país que sonhei. Isso às vezes me dá uma profunda tristeza”, conta a autora, que ganhou 10 prêmios de literatura no Brasil, vencedora do Príncipe das Astúrias na Espanha, integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) e ex-presidente da casa fundada por Machado de Assis.

 

O romance

Entendia que a literatura tem uma voz, parte de algum lugar, de uma geografia, mas não uma geografia circunscrita aos limites geográficos, e sim de uma geografia que tem seus mitos, sua trajetória, sua língua, sua formação. Achei sempre que um escritor das Américas deveria ou poderia fazer um romance total, um romance que, de algum modo, independente da narrativa, falasse das Américas para o mundo... Para que as pessoas, lendo esse romance, entendessem a gênese narrativa das Américas, de onde nós procedemos, quem somos nós. Sempre achei que esse livro deveria contar a nossa história, uma história antiga, ainda que sob o manto da contemporaneidade, mas essa contemporaneidade em literatura é muito falsa, é insuficiente, porque a contemporaneidade é vazia, não diz muito, ela só diz quando se alimenta de uma tradição ancestral.


Febre, talento, trabalho

Pode ser que exista uma coisa chamada talento, vocação. Mas estou convencida hoje, com minha experiência, de que é fundamental o trabalho. É fazer a minha parte. O trabalho te ensina a escrever. Você aprende devagar. Você vai ser colocado à prova à medida que exerce o ofício. E o ofício é muito exigente, cobra, além dessa experiência, reflexão, cultura. Mas não é a cultura eruditazinha não. É aquela cultura que insere você no mundo, que excede os limites narrativos. Não sendo assim, é muito pouco, você esgota a tua seara criadora no primeiro, segundo livro. E aí começa a repetir. Você tem que se renovar o tempo todo e quem te renova é a vida. É você pôr a mão no sangue da vida. Ao mesmo tempo, você tem que administrar o grande perigo: no afã de atingir uma falsa e pretensiosa perfeição, você corre o risco de asfixiar o seu texto. Não é o crítico que mata você, é você que mata
o teu texto.



Feminismo

Levamos uns anos recentes em que havia um certo descrédito no movimento feminista. Eram jovens, incultas, queridas, mas incultas, que julgavam ter alcançado o ápice dos seus direitos femininos e feministas, mas estão se dando conta de que isso não é verdade, que não ocorreu. Está voltando a noção de que a mulher ainda é uma cidadã de segunda classe. Isso você vê em todas as instituições, você vê na variação estética de um livro de mulher. Repara só. Tem bem menos (mulheres escrevendo) e os homens, em geral, não admitem a estética produzida por uma mulher e evitam ler. Ou lê e finge que não leu, porque quem lê se compromete, então não vai dizer que leu. Cada leitura que você faz, mesmo que a obra dessa autora seja sacrificada no altar dos reconhecimentos, vai mudando o ponto de vista do homem.



Novo homem

O homem brasileiro hoje tem uma postura muito mais aberta que antes. Ele é melhor pai, melhor companheiro. Mas ainda existe a violência doméstica e a matança de mulher prossegue. E as mulheres não denunciam porque são muito mais inválidas, elas são mais depauperadas socialmente. E além do mais, tem uma coisa pela qual ela luta: a paixão pelo filho. A paixão pelo filho imobiliza a mulher. O que pode competir com o filho? Nada. É o amor mais incondicional e extraordinário. Tenho uma admiração pelo amor materno que você não tem ideia. Fico em estado de graça quando tenho a sabedoria e a sensibilidade de detectar esse amor.


Filhos

Não tive. Não tenho nada. Só tenho livros e afetos profundos. Foi uma decisão pessoal minha. E não me arrependo, sobretudo porque em nenhum momento essa decisão danificou meu coração. Sou amorosa, adoro crianças, adoro meus amigos, sou uma mulher alimentada e
nutrida pelos afetos. Ai de mim sem meus afetos.


Escrever

Tenho uma paixão pela literatura porque ainda gosto da vida, ainda acho que, por enquanto, vale a pena viver. Mas mesmo quando eu vier a ter uma vida mais restrita e limitada, se minha cabeça estiver como está hoje, e se meu coração proclamar meu compromisso com a literatura, vou continuar escrevendo.


Brasil

Acumulando informações, percepções, fui vendo que não estávamos à altura da nossa possível grandeza. Nosso sistema educacional é medíocre. Somos um povo de uma incultura extraordinária. Você acha que podemos criar um país como mereceríamos com esse índice educacional? Não podemos. Ninguém lê. Nós quase pulamos Gutemberg e mergulhamos na imagem, numa imagem repetitiva que intimida porque não te deixa pensar, refletir. É muito difícil, porque a questão cognitiva é fundamental para a construção do país. E como acho que não somos estúpidos, é a falência do sistema que fez com que perdêssemos o hábito de pensar, o hábito de criticar, o hábito de contestar, o hábito de planejar o amanhã de uma forma contrária àquele amanhã que o poder quer implantar em você. A corrupção como uma prática metódica, natural. Porque esses corruptos praticam genocídio.

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