Ciclo de palestras em BH resgata o conceito de utopia

'Utópico, o novo espírito' aborda a dimensão humanista e emancipatória da utopia, buscando relacioná-lo com diversos aspectos da contemporaneidade

por Pablo Pires Fernandes 07/08/2015 10:30
Ilustração de quinho baseada em originais de Thomas Morus
(foto: Ilustração de quinho baseada em originais de Thomas Morus)

Quiseram matá-la. Mas, como ideias sobrevivem aos corpos e mentes que as conceberam, ela resiste. A ideia de utopia, apesar de ter sido marginalizada nas últimas décadas, resiste. Ao conceito original de Thomas Morus, concebido em 1516, foram agregados vários outros sentidos. Mas sua essência perdura e traz as características humanistas do sábio renascentista. O conceito de utopia, sua relação com diferentes correntes do pensamento e seus desdobramentos como parâmetro analítico vão ser alvo do ciclo de palestras 'Utópico, o novo espírito', e marca o retorno da programação do instituto Artepensamento a BH depois de dois anos. Ao longo de 16 semanas, 13 pensadores vão discutir o tema no BDMG Cultural e mostrar por que a ideia de utopia é tão necessária.

Adauto Novaes, que assina a curadoria da programação, defende que a utopia é sempre o desejo de emancipação. “Mais do que nunca, precisamos discutir esse conceito. As utopias são para a comunidade ou para a sociedade aquilo que os sonhos são para os indivíduos”, explica, citando uma ideia que será desenvolvida pelo filósofo francês Francis Wolff na palestra inaugural do ciclo, na próxima quinta-feira.

Diante dessa necessidade, Novaes questiona o porquê de as pessoas, na atualidade, não se moverem em direção à utopia. “Por que existe um silêncio do desejo de emancipação?”, indaga. Para ele, as sociedades historicamente recorrem às utopias “quando a realidade é insuportável”. No entanto, apesar da complexidade da sociedade contemporânea – urbana, midiática, consumista, individualista e até repressora –, o professor, em seu papel de filósofo, levanta dúvida: “O que acontece hoje? Será que estamos vivendo em plena felicidade para abrir mão da utopia?”.

As hipóteses para explicar a marginalização da utopia são muitas. Uma delas será um dos eixos das discussões abordadas por alguns conferencistas: a revolução da tecnociência, da biotecnologia e da produção de signos da era digital. Essa revolução, segundo Novaes, “não está sendo feita pelos ideais utópicos humanistas, mas pela ciência e pela técnica”. Novaes afirma que esse deslocamento de foco cria um problema grave, já que, parafraseando Heidegger, “a ciência não pensa, mas também não sonha, e a utopia é um sonho”. A orientação imperativa da tecnociência sobre o pensamento, a arte e o afeto cria, para ele, o que é chamado de pós-humanismo.

Novaes se diz assustado com as pesquisas no campo da inteligência artificial que pretendem superar a inteligência humana e biológica, da possibilidade de nanorrobôs habitarem nossos corpos e adiar (ou até abolir) a morte. “Não é que o robô vai ser mais inteligente que o homem, mas é que o homem está se robotizando através dos chips que vão sendo implantados, através das formas de organização da sociedade. O homem vai se tornando um ser da técnica. Isso seria o fim do humano.”

Outro questionamento inevitável a respeito da ausência da utopia na sociedade contemporânea é a relação com o tempo. Em um mundo regido pela instantaneidade, pelo imediatismo e pela descontinuidade, a noção de tempo é desconfigurada. Novaes aponta para a falta de noção histórica, de um “achatamento temporal” e de uma presentidade exacerbada que “abre mão da própria experiência”.  E cita Paul Valery que diagnosticou um mal da modernidade. Para o poeta francês, a modernidade tende a abolir as duas maiores invenções da humanidade, que são o passado e o futuro. “Sem o passado e o futuro a gente não tem o presente também, porque o tempo é constituído dessas três dimensões. Então, sem isso, o que temos? Temos o imediato, a imediatez das coisas”, explica.

Ao desconstruir a relação temporal, a sociedade contemporânea problematiza a memória e a experiência vivida, elementos constituintes de qualquer subjetividade. “Isso é um problema à medida em que as pessoas, vivendo em função do presente mais imediato, perdem a percepção, perdem o olhar, não veem o outro, perdem a dimensão da sensibilidade ética.” A dimensão política, portanto, também se vê problematizado, já que o pragmatismo e o domínio do real sobre a sociedade deixam de lado os conceitos e a dimensão ética. “A política hoje perdeu os ideais utópicos e se transformou em simples estratégia de conquista e poder, esvaziou os ideais”, argumenta.

No ciclo, alguns dos pensadores vão abordar temas como afeto, sexualidade, corpo. São elementos que servem para combater a superficialidade do presente e resgatar a potência da experiência, como se as relações mais humanas, no limite do próprio corpo, possam nos apontar o caminho da utopia perdida. A noção mais evidente aqui é o desejo, que age como potência e impulsiona a ação humana e rompe com a vivência descartável do cotidiano.

Novaes acrescenta que os dois campos em que a utopia se manifesta são as artes e o pensamento. “Não é por acaso que os grandes artistas – os poetas – e os grandes pensadores é que melhor trabalharam a utopia. A boa literatura, a arte, sempre se desprega do real, mas sempre questionando o real”, enfatiza. E, novamente, volta a citar um texto de Valery, que, para ele, serve como espécie de epígrafe do ciclo de palestras: “O que seríamos sem a ajuda daquilo que não existe? Pouca coisa. E nossos espíritos, desocupados, se as fábulas, os enganos, as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses, nobres problemas metafísicos, não habitassem nossas profundezas, e nossas trevas naturais de seres e imagens sem objeto?”

'Utópico, o novo espírito' - Ciclo de palestras

Abertura na quinta-feira, às 18h. As demais ocorrem às segundas e terças, às 19h. BDMG Cultural, Rua Bernardo Guimarães, 1.600, Lourdes, (31) 3219-8486.  Inscrições pelo site www.mutacoes.com.br. R$ 30 (ciclo completo) e R$ 10 (palestra avulsa).
Informações: (31) 3224-1919.

MAIS SOBRE PENSAR