Livro de Waly Salomão sobre Hélio Oiticica registra evolução do artista

Obra destaca papel de transgressor dos cânones estéticos e sociais vigentes

por Walter Sebastião 24/07/2015 00:13
A obra de Hélio Oiticica (1937-1980), assim como a de Lygia Clark (1920-1988), como observa o inglês Guy Brett, tangencia, às vezes pioneiramente, movimentos que fizeram a passagem do moderno para o contemporâneo: concretismo, minimalismo, earth art, arte ambiental, conceitualismo, body art, art povera etc. E de modo singular: colocando o espectador no centro da obra. É resultdo de movimentação ocorrida a partir do final dos anos 1950 que transformou todas as ideias que se tinham até então sobre a arte. E, por isso mesmo, textos que ajudam a compreender melhor as realizações, a fascinante aventura intelectual e criativa desses artistas têm valor especial.

É esse aspecto que faz de Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? E outros escritos (Cia. das Letras), do poeta Waly Salomão (1943-2003), livro precioso. É interpretação dos momentos mais radicais da obra do artista que, discutindo os limites do quadro, chega à criação de áreas, no espaço real, que convoca o espectador para vivências lúdicas-libertárias também com o objetivo de descondicionamento da percepção. Tal proposta tem no prazer, na rebelião contra as regras, na experimentação formal a principal referência. É, ainda, arte surpreendentemente materializada em contexto absolutamente contrário a tudo isso: o estabelecido com a implantação de uma ditadura militar no Brasil.

Nem adianta reclamar da dicção mitômana com que Waly apresenta Oiticica (“um Prometeu”, Orfeu, Narciso, Dionisos). A retórica barroca é parte do estilo do baiano. Os exageros na declarada veneração ao artista revelam o quanto obra, pensamento e presença de Hélio impactaram quem conviveu com ele. Quem está nas páginas do livro é o Hélio praticante e apologista da transgressão estética e social. Persona adulta de garoto precoce (e pedante, segundo contemporâneos) que vivia citando Nietzsche. Transformação significativa, já que o choque e o diálogo entre alta cultura e submundo social vão fornecer matérias e conceitos para as criações de Oitica.

Movendo o programa estético do artista, para Waly, estaria “vontade de apreender o sentido bruto do mundo em seu nascedouro”. E sentimento de que “o que valia era o mundo imanente com suas diversas aparições, camadas, capas, superfícies, dobras, fissuras, arestas”. Que só poderiam ser expressas por obras que apagassem “a linha divisória entre corpo e espírito” (assim como a oposição entre centro e margem, instinto e razão, Brasil e mundo etc.). Mas também “cumplicidade e simbiose com as agruras e a volta por cima daqueles que, na metáfora geométrica, constituem a base da pirâmide social”. Resultaria da articulação desses elementos “um cosmos” de enorme requinte intelectual construído com materiais (e conceitos) das favelas e das populações pobres.

O uso de gírias populares como “parangolé”, por exemplo, seria tática linguístico-filosófica “marcando a plasticidade dinâmica da língua”, com o objetivo de promover a “descoagulação e fluidez de sentido”. A bandeira Seja marginal seja herói, por sua vez, remeteria à “resistência heroica” a modismos patrocinados pelo “mundinho” dos marchands, curadores, galerias e museus”, além de carregar ainda pencas de outras significações táticas, éticas, estéticas etc. A Homenagem a Cara de Cavalo é um poema-protesto que afirma “revolta individual” diante do amigo morto pelo Esquadrão da Morte. Trabalhos carregados de “agressividade política” contra a violência do grupo de extermínio se tornaram, por Oiticica, metáfora da época.

Ninguém precisa concordar com as análises de Waly Salomão, mas o texto dele tem o mérito de articular aspectos que parecem inconciliáveis. E expor temas (como o uso de cocaína, mas também a irreverência anárquica, o gosto por vida bandida etc.) que não há como recalcar, até porque aparecem nos trabalhos do artista. O que se revela no texto, para usar imagem de Waly Salomão, é Hélio Oiticica como um Narciso que, com passos e ginga de samba, tenta equilibrar (e driblar) as contradições e adversidades do mundo em que viveu. Uma curiosidade: segundo Waly, foram os escultores Jackson Ribeiro e Amílcar de Castro que, ao convidar Hélio Oiticica para pintar alegorias carnavalescas para a Mangueira, teriam levado o artista a descobrir o mundo dos morros cariocas.

Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? E outros escritos  
Waly Salomão  
Companhia das Letras  
160 páginas  
R$ 39,90 

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