Christiane Tassis divulga trecho inédito de novo livro para o Pensar

"Você sabe quando vai ser atacada por um ladrão? A selva é como a cidade. Imprevisível". Trecho conta a experiência da autora, isolada na selva amazônica para escrever

por Estado de Minas 17/07/2015 11:48
Escritora, roteirista e redatora publicitária, Christiane Tassis, 46 anos, nasceu em Governador Valadares. Autora de 'Sobre a neblina' (2006) e 'O melhor do inferno' (2009), ambos publicados pela Editora Língua Geral. O primeiro romance foi adaptado para o cinema por Paula Gaitán, sob o título 'Exilados do vulcão', que foi o vencedor do Festival de Brasília 2013
Divulgação (foto: Escritora, roteirista e redatora publicitária, Christiane Tassis, 46 anos, nasceu em Governador Valadares. Autora de 'Sobre a neblina' (2006) e 'O melhor do inferno' (2009), ambos publicados pela Editora Língua Geral. O primeiro romance foi adaptado para o cinema por Paula Gaitán, sob o título 'Exilados do vulcão', que foi o vencedor do Festival de Brasília 2013)
Christiane Tassis
 
A viagem pela Amazônia me provocou um desejo estranho: escrever sozinha na selva, esse lugar onde não há palavras. Contratei um piloteiro e pedi que me levasse a uma ilha deserta, sem vestígio de gente. Um lugar que não conhecesse a destruição.

Maia disse que me levaria à Ilha Onde Dormem Os Papagaios, no Arquipélago Mariuá.

No outro dia, no início da tarde, lá estava eu, montada em sua voadeira, com meu bonezinho de abas de nylon bege cobrindo o pescoço, como uma gringa, adentrando o labirinto de selva que se multiplicava em dois, através do espelho do Rio Negro, munida de um caderninho e um lápis.

O céu já se preparava para o pôr do sol – o rosa e o laranja apresentavam-se sobre o azul, quando Maia parou a voadeira diante do paredão verde da floresta e desligou o motor.

“É aqui”, disse. E ficou em silêncio, olhando para o alto. Logo, o céu começou a se pontilhar de verde. Eram os primeiros papagaios, anunciando o início do espetáculo.

“Todos os dias do ano, independente de ser estação da cheia ou vazante, eles fazem a mesma festa durante o pôr do sol”, explicou-me, enquanto incontáveis papagaios surgiam de todos os lados, numa algazarra infinita, em direção às palmeiras. Uma rave de papagaios. A maioria voava em dupla, alguns sozinhos, em direção às suas palmeiras-pousada. De uma hora para outra, como num toque de recolher, silenciaram-se. Durante alguns minutos, nenhum bicho se pronunciou e o silêncio se fez absoluto. Começou então o turno dos sapos e grilos.

O sol já estava quase próximo ao rio e já se via a Vênus brilhando no céu. Seria uma noite sem lua.

“Quanto tempo demora para escurecer?” perguntei a Maia.

“Uma meia hora”, respondeu ele, olhando o céu.

“Posso ficar meia hora aqui sozinha?”

Ele franziu as sobrancelhas, incrédulo.

“Não vai ter medo?”

“Vou ter pânico.”

“Então, para quê?”

“Preciso ter esta experiência. Você acha muito perigoso?”

Ele olhou para os lados, e depois para mim.

“Você sabe quando vai ser atacada por um ladrão? A selva é como a cidade. Imprevisível”.

Quis explicar a ele que meu medo, na cidade, não é de ladrão. É um medo maior, não localizado, introjetado, crônico, subcutâneo. Medo de não ter isso, de perder aquilo, de ser, de não ser, de não poder pagar o aluguel, de UTI, de aparelhos que prolongam a vida, medo de nunca mais voltar a amar, medo de apenas sobreviver.

Na selva o medo era outro, inimaginável até então. Medo de ser comida por um bicho ou atacada por alguma entidade misteriosa, que nunca fizera parte da minha vida. Estava num terreno onde não adiantava ter autoconfiança, dinheiro ou motivos para sobreviver: a onça me comeria, a cobra me engoliria, e pronto. Da mesma maneira que um gesto humano determina o destino de uma árvore, de um peixe ou de uma cobra, eles poderiam determinar a minha sorte.

Mas não expliquei nada. Acenei com a cabeça, e, com o coração desarticulado e o olhar firme, disse a ele para ir. Com um riso contido, Maia me deixou na praia de areia branca e partiu. Com ele e o motor do barco, desapareceram todos os rumores de civilização.

Então estávamos ali, eu e minha mãe biológica, a natureza. Eu estava disposta a ouvi-la. Os sapos e grilos seguiam fazendo a festa, um pássaro maravilhoso piou, seria o uirapuru?

Eu jamais conseguiria escrevê-los. Precisava relaxar. Sentei-me em posição de ioga diante do rio. Técnicas de relaxamento poderiam ser técnicas de sobrevivência?

Visualize seu corpo inteiro sobre o chão – calcanhar, batata da perna, nádegas, costas, costelas e órgãos internos. Imagine que estão todos relaxados.

Mas não estavam nada relaxados. Sobre cada pedaço do meu corpo pairavam cobras e jacarés gigantes. Às minhas costas, onças e até panteras negras; à minha frente, piranhas de filme americano pulando da água.

O azul-cobalto, a poucos tons do preto absoluto, invadia o teto do mundo.

As estrelas começaram a aparecer. Os índios Desana-Wahari Diputiro Porã acompanham as mudanças das estações do ano através das constelações e do amadurecimento das frutas. As constelações se relacionam com o tempo e o rio, de enchente a verão: Enchente da garça, verão de lagartas, Enchente da cabeça da jararaca, Enchente do corpo da jararaca, Enchente dos ovos da jararaca, Verão do intervalo da jararaca, Enchente do pedaço de osso do tatu, Enchente do corpo do tatu, Verão de ingá, Enchente do camarão, Verão de Pupunha, Enchente da barba da onça, Enchente do corpo da onça, Enchente sete-estrelas, Enchente do cabo de enxó, Enchente do jirau de pesca, Enchente de lontras, Enchente da formiga de fogo, Enchente de folha, Verão de folha.

Olhei para o céu e supus a Enchente da jararaca e a jararaca em si. A barba da onça e o rugido da onça em si. Mas chegara finalmente o momento em que já não adiantava ter medo. Eu estava vulnerável a ponto de não me restar outra alternativa senão sobreviver. Então, eu me senti viva. Estar num lugar para devorar ou ser devorada, e não admirada, me pareceu libertador.

“Você não teve medo?”, perguntou Maia, assim que me resgatou de mim mesma.

“Tive. Mas não angústia.”

Olhei para o céu novamente. No barco, coloquei o pé na água, em cima da constelação da jararaca refletida no rio. Quando a voadeira partiu, mergulhei a ponta do lápis, unindo o nosso rastro. A Amazônia, pela primeira vez, me pertencia.

*'Pertencimento' é um trecho inédito do seu próximo romance, 'Três selvas', e foi cedido com exclusividade para o Pensar.

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