Barack Obama consegue novo fôlego ao aprovar temas importantes

No meio de seu segundo mandato, o presidente aposta na diplomacia para restabelecer a imagem dos EUA no cenário mundial

por Pablo Pires Fernandes 10/07/2015 00:13

QUINHO
(foto: QUINHO)
A última semana de junho foi memorável para o governo de Barack Obama. O presidente dos Estados Unidos obteve vitórias políticas de impacto simbólico e duradouro. Tais conquistas, certamente, serão decisivas nas análises sobre seu legado à frente da Casa Branca. Diante do sucesso presente, a dimensão histórica de seu governo tem alimentado um debate, não sem boa dose de controvérsia, a respeito de seu legado. O fato ganha ainda maior dimensão porque o presidente está no meio do segundo mandato, com o Congresso (Câmara e Senado) dominado pela maioria opositora republicana. Mas o sucesso da semana cria expectativas de que Obama pode, sim, realizar um governo histórico.

“A semana” começou com a aprovação no Congresso da medida que autoriza o presidente a negociar os termos do Tratado de Parceria Transpacífico (Trans-Pacific Partnership – TPP). A vitória, alcançada graças ao apoio da oposição republicana, constitui a abertura de mercado para 12 nações. Em seguida, a votação que garantiu a legalidade do Obamacare, como foi apelidado o Affordable Care Act, deve representar a mais significativa e abrangente conquista para a população americana. A lei, até então questionada por vários estados, é o maior programa de reforma no sistema de saúde nos EUA em 50 anos e um dos pilares do governo Obama.

No dia seguinte, a aprovação do casamento gay pela Suprema Corte estabeleceu um padrão legal unificado para os 50 estados do país. Foi, certamente, a decisão mais enaltecida e de maior repercussão no Brasil. O caso tem significado contundente para a causa dos direitos civis em todo o mundo. Em ato simbólico, a Casa Branca se iluminou com as cores do arco-íris.

A cereja do bolo foi um momento de grande apelo emocional: o discurso – um elogio – realizado na Igreja Metodista Africana Episcopal Emanuel, onde nove negros foram mortos a tiros por um supremacista branco. As imagens de Obama discursando e cantando Amazing grace tiveram enorme impacto. Suas palavras sobre a questão racial e a desigualdade foram consideradas um ponto alto de sua trajetória política e, segundo analistas, devem se tornar referência histórica sobre esses temas.

A semana dourada de Obama surpreendeu o meio político de Washington – sobretudo seus adversários –, causou certo furor na imprensa e impulsionou a popularidade do presidente. Jornalistas e analistas se apressaram em tentar detectar o quanto dessas conquistas resistirá ao tempo e qual deverá ser o legado do 44º presidente dos EUA. O sucesso também redimensionou as expectativas a respeito das 80 semanas que lhe restam na Presidência. Para garantir um legado de vulto, todavia, é necessário tempo. Apesar de conquistas significativas, Obama também acumula promessas não cumpridas e decisões questionadas por setores relevantes na arena política interna e externa.No campo doméstico, Obama gostaria de aprovar a tão discutida reforma de imigração, com o objetivo de regularizar a condição de cerca de 11,2 milhões de estrangeiros nos EUA (dados de 2012, Pew Research). Mais de 5% da força de trabalho no país é executada por gente sem cidadania. A oposição ao projeto original, no entanto, é grande. E os trâmites legislativos e judiciários, morosos e complexos, reduzem radicalmente as chances de sucesso do presidente.

Não foram poucas as vezes em que Obama manifestou seu desejo de instituir maior controle sobre o uso e a venda de armas de fogo no país. Os planos do governo, contudo, sempre despertam reação violenta dos defensores da Segunda Emenda, que concede aos indivíduos o direito de portar armas. O lobby da indústria armamentista é um dos mais poderosos nos EUA. O projeto acabou ficando em segundo plano.

Outra fonte de controvérsia é a espionagem. As revelações de Edward Snowden, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), abalaram as relações diplomáticas com vários países, inclusive o Brasil. Defensores das liberdades civis nos EUA questionam os limites da privacidade. Diante do escândalo, Obama tem buscado minimizar os efeitos diplomáticos. Tenta achar o equilíbrio entre atender às exigências da legislação americana sobre privacidade de seus cidadãos (a lei não se aplica a estrangeiros) e a necessidade de evitar atentados.

Apesar de a política externa nos EUA ser objeto de acirrado debate e, claro, alvo de interesses econômicos, a Presidência tem certa autonomia para agir. Apostando na possibilidade de driblar a oposição interna, Obama fez apostas ousadas na diplomacia. Reunido com assessores no início do segundo mandato, disse que gostaria de considerar todas as possibilidades, incluindo revisar as políticas vigentes. As prioridades mencionadas então foram, segundo assessores, restabelecer um diálogo com Cuba, buscar um acordo com o Irã na questão nuclear, firmar o tratado com os países do Pacífico e obter ganhos a respeito das políticas sobre as mudanças climáticas.

As metas estabelecidas naquela reunião têm sido cumpridas. O tratado comercial não foi fechado, mas o presidente conseguiu carta branca do Congresso para negociá-lo. Alguns avanços, visando à reunião mundial sobre o clima em Paris, no fim do ano, foram anunciados durante a recente visita da presidente Dilma Rousseff a Washington. As relações diplomáticas com Cuba caminham para a plena normalização. Da lista de então, só falta o Irã.

As quatro apostas demonstram o empenho de Obama na mudança de paradigma. Concentrando-se em temas pontuais e enfatizando a diplomacia em detrimento da tradicional postura imperativa e militarista, o atual governo tem obtido resultados históricos.

Restabelecer as relações com Cuba pode ter sido uma cartada tardia e óbvia para muitos. Porém, Obama teve a coragem de realizá-la e estender a mão aos vizinhos historicamente aviltados. O gesto não é apenas simbólico, mas representa uma página virada na lógica ultrapassada da Guerra Fria. Também responde a uma demanda histórica das nações latino-americanas e mostra disposição a uma relação supostamente menos imperativa com a região. Mas ali na ilha, a existência da prisão de Guantánamo depõe moralmente contra os EUA. E ainda evidencia uma velha promessa de campanha não cumprida.

Muitos críticos apontam que Obama não deu a devida importância para as relações com a Rússia e a China. De fato, a política dos EUA em relação à Ucrânia e ao Leste Europeu fez com que a tensão entre as duas potências nucleares fosse revisitada. A insistência americana de avançar a posição da Otan para perto da fronteira russa foi um desastre. A visão de que o colega russo, Vladimir Putin, foi o único responsável pela crise na região é ingênua, embora seja repetida insistentemente pela mídia ocidental.

O Oriente Médio, desde a Segunda Guerra Mundial, é uma região de especial interesse para os EUA, sobretudo por causa do petróleo. As interferências americanas na região foram recorrentes e, quase sempre, com consequências trágicas. A política de Obama para a região ainda contém muita ambiguidade. O apoio ao Egito, que vive uma nova ditadura e a condescendência em relação aos direitos humanos vilipendiados na Arábia Saudita são questões mal resolvidas.

Depois de se concentrar, no primeiro mandato, em encerrar a guerra no Iraque e no Afeganistão, houve um esforço em buscar uma solução para o conflito israelense-palestino. Fracassou, por enquanto. Mas a responsabilidade desse fracasso se deve mais à resistência do atual governo de Israel e da força que ele dispõe na política interna americana. Obama gastou algum capital político na empreitada e se desgastou. Ele sabe, porém, que a solução para esse histórico problema passa pela Casa Branca, necessariamente.

O surgimento do Estado Islâmico e suas conquistas espetaculares não estavam nas previsões de Obama nem de seus melhores analistas. O terror que impera no Iraque, na Síria e em outros países obrigou a uma revisão na política de Washington para a região. Voltar novamente a atenção para o Iraque não estava nos planos do presidente, que buscava um diálogo com o ditador sírio Bashar al-Assad. Depois do início da guerra civil, Washington optou por uma estratégia duvidosa: armar os rebeldes. A prática se mostrou novamente ambígua ao detectar que parte desse apoio (militar, sobretudo) aos rebeldes sírios favoreceu o próprio Estado Islâmico.

A aposta mais importante, sem dúvida, é buscar um acordo sobre o programa nuclear do Irã e renovar as relações com a República Islâmica, um inimigo histórico. A diplomacia frenética mobilizou, além de outras cinco potências, um esforço das duas partes e só foi possível graças à eleição de Hassan Rohani para Presidência do país persa, em 2013. Um acordo que garanta o caráter pacífico e civil do Irã em troca da suspensão das sanções contra o país tem um peso político histórico e deixará Obama em  posição de destaque entre os presidentes americanos. A força da distensão da velha querela terá, certamente, influência em todo o Oriente Médio.

 

Entrevista

 

O professor Jeffrey Alexander é considerado um dos mais importantes sociólogos dos Estados Unidos. Fundador e codiretor do Centro de Sociologia Cultural da Universidade de Yale, seus trabalhos ressaltam a importância dos aspectos culturais e simbólicos na construção de valores sociais e suas consequências políticas. Alexander é autor de The performance of politics: Obama’s victory and the democratic struggle for power (2010) e coautor de Obama Power (2014), escrito com Bernadette Jaworsky. Nas duas obras, busca evidenciar como a conquista do cargo, em ambas as disputas, ocorreu, em grande medida, pela capacidade de Barack Obama de utilizar seu carisma e demonstrar seu poder simbólico para o eleitorado.

Alexander aponta que a esfera pública é regida pelo capital simbólico, a representação da política, fato que Obama soube explorar com maestria. O autor argumenta que, ao enfatizar sua trajetória pessoal e política, o candidato democrata criou uma narrativa na qual o eleitorado se espelhou e com a qual se identificou. Essa identificação, portanto,  foi elemento crucial nas duas vitórias de Obama. Nesta entrevista exclusiva para o Pensar, Alexander avalia o legado de Obama e destaca a ruptura na política do Partido Democrata.

A imprensa americana tem se referido como “a melhor semana” de Obama ao período em que o presidente obteve importantes vitórias (a aprovação na Suprema Corte do Obamacare e do casamento gay, além de seu discurso em Charleston a respeito da desigualdade e da questão racial). Quais os efeitos dessa semana para seu legado?

A aprovação do Obamacare, que oferece um mínimo de garantia para a questão da saúde, e do casamento gay pela Suprema Corte terá consequências duradouras para as políticas domésticas e eram temas caros para o Partido Democrata. Foram importantes conquistas para o governo Obama. Certamente, ele será lembrado por essas conquistas depois de deixar o cargo.

Qual da normalização das relações com Cuba para o legado de Obama em relação à política externa?

A normalização das relações com Cuba também foi uma grande conquista e terá impacto em seu legado, especialmente considerando os laços com os países da América do Sul, incluindo o Brasil, que demandam há um bom tempo a mudança na mentalidade da Guerra Fria. Ainda há muito a ser feito, mas podemos considerar esse fato como um grande passo, que rompe com a política de seus antecessores.

Como avalia a possibilidade de um acordo com o Irã sobre o programa nuclear?

Isso seria uma conquista extraordinária, que pode implicar em um reinício da geopolítica no Oriente Médio e além. Obama teve a coragem de se manter firme diante das enormes críticas – internas e fora dos EUA – a respeito do tema, sustentando que ele faria todo o esforço para “conversar com o Irã”. Sua atitude exemplar e civil (não militar) em relação a adversários é um modelo de como as relações internacionais devem ser conduzidas. Se ele for bem-sucedido, será aclamado pelas próximas décadas.

Apesar das dificuldades em relação ao Congresso, quais os temas da agenda de Obama o senhor acredita que ele ainda poderá fazer avançar até as eleições?

Obama está tentando renovar as relações com os países asiáticos, para construir uma alternativa econômica à hegemonia chinesa na região, além de criar alianças militares que demandem que a China seja fiel ao argumento de que seu crescimento é meramente pacífico. Seu esforço tem sido, nos dois mandatos, criar uma política externa “pós-imperialista”. Espero que ele tenha sucesso. Em termos domésticos, Obama vai continuar tentando alcançar a reforma sobre a imigração e ampliar a ajuda econômica às cidades do interior. Nenhum dos dois temas, no entanto, deverá ter sucesso, por causa da divisão no próprio governo. O que ele puder fazer por meio de decretos ele fará. Nesse sentido, deve se concentrar na mudança da relação entre os departamentos de polícia do interior e as comunidades negras mais pobres. Mais de 20 departamentos de polícia de diferentes cidades já foram assumidos pelo FBI para receber novo treinamento.

Alguns críticos de Obama apontam que ele expandiu enormemente os programas de vigilância eletrônica. O que acha dessas críticas?
Os setores progressistas ocidentais têm dificuldade em aceitar que é necessário – e deverá continuar a ser – que haja uma grande capacidade de vigilância enquanto houver mídias digitais e telefones celulares. Enquanto houver pessoas com intenção de atacar uma nação e matar seus cidadãos – e a maioria dos países tem esse problema –, os líderes dessa nação têm a obrigação de usar todas as ferramentas ao seu alcance para evitar tais mortes. Porém, essas ferramentas devem estar sob um controle legal e democrático. A meu ver, portanto, o desafio não é eliminar a vigilância, mas garantir que ela esteja sob contínua revisão de nossos representantes democráticos e juízes que representam a nossa Constituição. Obama deu passos para garantir isso desde seus primeiros dias no cargo. Mas ele não se mexeu rápido o suficiente para alterar a letargia burocrática e os interesses das várias agências de espionagem. O caso Snowden foi muito, muito benéfico para os EUA, porque cutucou Obama a ponto de ele agir mais agressivamente, seguindo as linhas que tinha traçado, e ir além delas.

Como o senhor vê o impacto do discurso de Obama em Charleston depois do massacre de nove negros na igreja da cidade, no qual ele cantou Amazing grace?
O povo americano e sua elite intelectual começam a entender o objetivo moral de Obama e seu gênio político. O discurso em Charleston foi uma das discussões sobre raça e desigualdade mais profundas em toda a história dos EUA. Isso pode, e vai, ser colocado juntamente com as críticas retóricas e as performances de (Abraham) Lincoln e (Martin Luther) King.

Como acha que Obama será lembrado daqui a 10 ou 20 anos?

Domesticamente, Obama será lembrado como líder nacional que estabeleceu um corte contra a guinada à direita do Partido Democrata. Ele legitimou o papel do governo federal em relação ao grande capital e aos bancos em termos de criação de maior igualdade social, como, por exemplo, no campo da saúde. Da década de 1980 em diante, houve uma guinada neoliberal no Partido Democrata, que teve seu auge durante a liderança conservadora de Clinton. Essa era foi encerrada agora, graças a Obama. Em política externa, ele será lembrado como alguém que buscou conduzir os EUA em direção a uma política pós-imperialista em relação ao Oriente Médio, à América Latina e à Ásia. (PPF)

 

PARA LER MAIS
. A audácia da esperança, Barack Obama, 2007, Editora Larousse
. A origem dos meus sonhos, Barack Obama, 2008, Editora Gente
. A ponte, vida e ascensão de Barack Obama, David Remnick, 2010, Cia. das Letras
. No país de Obama, Rodrigo Alvarez, 2009, Nova Fronteira
. Obama e as Américas, L. Whitehead, A. Lowenthal e T. Piccone (orgs.), 2011, Editora FGV
. Obama Power (em inglês), Jeffrey Alexander e Bernadette Jaworsky, 2014, Polity Preess
. Obama y el império (em espanhol), Fidel Castro, 2011, Consortium Book Sale
. The performance of politics (em inglês), Jeffrey Alexander, 2010, Oxford University Press

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