Desafio e superação

Drauzio Varella relata sua experiência como maratonista e mostra que correr não é apenas um benefício fisico e mental, mas pode ser o encontro com o equilíbrio

por 04/07/2015 00:13
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Alex Trautwig/Getty Images/AFP %u2013 2/11/14 (foto: Alex Trautwig/Getty Images/AFP %u2013 2/11/14)
Valf



A célebre distância da maratona se tornaria oficial devido a um capricho da família real inglesa. Na Olimpíada de Londres, em 1908, a realeza queria acompanhar a prova sem sair do castelo de Windsor. Aos 40 quilômetros das provas disputadas até então foi acrescido um trecho mais longo. No total, passava-se agora para os míticos 42 quilômetros e 195 metros. A simples menção dessa distância vem quase sempre acompanhada de assombro. Para o grupo daqueles que não correm, maratona é algo sobre-humano e associado a um estado de insensatez. Já para os corredores, um dos maiores desafios e objetivo a ser conquistado.

Quem corre distâncias menores conhece as dificuldades presentes ao se aumentar a quilometragem dos treinamentos. Sabem que com força de vontade e alguma preparação é possível terminar muito bem provas de cinco ou 10 quilômetros. Entretanto, corridas com distâncias maiores necessitam bem mais que isso. E é o que nos mostra Drauzio Varella em seu mais recente livro. Médico oncologista, palestrante, apresentador de televisão, escritor com mais de uma dezena de livros publicados – entre eles o premiado Estação Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti em duas categorias –, Drauzio nos apresenta uma não tão nova, porém, pouco conhecida faceta – sua vida de atleta.

Como o subtítulo do livro já propõe, em Correr – O exercício, a cidade e o desafio da maratona, o escritor divide seus cinco capítulos de forma bem clara, entre suas impressões sobre os locais onde treinou e correu, registros históricos de algumas maratonas e a analise da fisiologia do esforço durante a corrida. Coloca sob a perspectiva médica as lesões e as várias mudanças que ocorrem no organismo no decorrer das provas e, assim, desmistifica a ideia do risco iminente da morte na prática de exercícios de longa duração. Acompanhar a sua transição para o mundo das maratonas, contudo, torna-se o grande diferencial do livro.

Correndo provas menores desde os anos 80, Drauzio resolveu participar de uma maratona como um desafio pessoal, no ano em que comemoraria seu cinquentenário. O que o levou a essa escolha foi um encontro casual com um antigo amigo. Na conversa, entre reminiscências, o médico era confrontado com o avassalador pessimismo do colega, que ao saber da idade que se aproximava decretou que, depois dos 50 anos, começa a ruína do homem. Fugir deste cruel destino agourento pareceu a coisa certa a ser feita. Escolheu correr a famosa Maratona de Nova York.

O interessante em poder seguir seu caminho nesta empreitada, desde o planejamento, o começo dos treinamentos, os erros, acertos, mais erros, as dores, é se identificar com sua trajetória. Ao contrário de biografias de consagrados corredores como Emil Zatopek ou Prefontaine, onde o extraordinário de seus feitos e glórias beira a ficção, o relato sensível de um corredor amador com ambições bem mais modestas que as dos heróis do atletismo (porém, não menos prodigiosas) é a grande conquista. À primeira vista, um mundo primordialmente dividido entre profissionais e amadores, a corrida na verdade apresenta inúmeras variáveis e nuances. Há quem corra pela saúde, há quem corra contra o tempo, há quem corra pelo tempo perdido.

Drauzio, durante o extenuante trecho final de uma prova, chega a se perguntar sobre as razões e o propósito daquilo tudo. Pensamento recorrente entre os corredores na parte da prova em que o corpo quase já não encontra recursos para seguir em frente, na verdade, é um questionamento sem respostas. Correr os 42 quilômetros da maratona de forma alguma é a parte mais complicada. Imagine ter que encontrar tempo em meio aos compromissos do dia a dia, manter-se motivado e enfrentar o volume de treinamento semanal que pode facilmente ultrapassar a distância de duas provas completas. A resposta fica ainda mais distante. Por outro lado , como o próprio autor coloca, a corrida é um ponto de equilíbrio em sua vida. Correr o fortalece, física e mentalmente, e o habilita a seguir adiante. E cada vez mais longe.

Cada corrida é única. Todas elas têm suas história particulares, suas riquezas e todo corredor a sua. O que move cada um a seguir em frente é estritamente pessoal e, na maioria das vezes, indecifrável. Drauzio Varella tinha a meta traçada de completar a Maratona de Nova York em três horas e meia. Chegou muito perto. Oito minutos depois do planejado. Apenas 11 segundos mais lento a cada quilômetro o fizeram distante de seu objetivo. Cerca de 1 segundo a cada 100 metros. Ou algo entre duas e três passadas. Transportando para a fria estatística e reduzindo meses de extenuante treinamento e esforço a uma simples equação distância versus tempo, o resultado é esse.

Curiosamente, segundo a lenda, Fidípedes, lendário soldado e melhor corredor do Exército ateniense, incumbido de atravessar correndo a distância entre as cidades de Maratona e Atenas para dar a notícia da vitória de seu Exército, teria completado a distância em pouco mais de seis horas, resultado incapaz de fazê-lo terminar dentro do tempo-limite das provas da era moderna. Drauzio parece não se importar com esse tipo de comparação. Tem a consciência de que a corrida não é uma ciência exata e, apesar de ser uma batalha contra o tempo, se faz muitas vezes de pequenos momentos, com endorfina, competitividade, ego, saúde ou o simples gosto de colocar o tênis e correr .

Apesar de não ter conseguido nunca abaixar o tempo estabelecido há mais de 20 anos, nota-se que é feliz com suas inúmeras e expressivas conquistas. Quando digo isso, não falo, por exemplo, em sua classificação para a concorrida maratona de Boston, conseguida dentro de uma difícil zona de tempo estabelecida por faixa etária. Penso mais na prova realizada em Chicago, em 2009, onde Drauzio, em um grande esforço, teve que completar a prova em um tempo de cinco horas, somente pelo prazer de acompanhar a filha mais nova em sua primeira maratona.

. Valf é ilustrador e maratonista



CORRER – O EXERCÍCIO, A CIDADE E O DESAFIO DA MARATONA


. De Drauzio Varella
. Companhia das Letras
. 216 páginas, R$ 29,90



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