Memórias de um homem comum

Em Nós, narrador nos leva a uma viagem pela Europa para evidenciar o dia a dia de uma família em crise

por 04/07/2015 00:13
Kristofer Samuelsson/Divulgação
Kristofer Samuelsson/Divulgação (foto: Kristofer Samuelsson/Divulgação)
Maria Thereza da Silva Pinel



Douglas Petersen é um bioquímico de 54 anos que mora no subúrbio de Londres com a esposa, Connie, e o filho adolescente, Albie. Sua vida seguia o ritmo natural e esperado por ele, quando, no meio da madrugada, é acordado pela mulher, que diz: “Acho que nosso casamento já deu o que tinha que dar, Douglas. Acho que quero me separar de você”. Assim começa Nós, o mais novo livro do inglês David Nicholls.

Passados cinco anos do seu best-seller Um dia – transformado em filme em 2011 –, Nicholls lança um romance que tem como narrador Douglas, um personagem de meia-idade vivendo situações e conflitos comuns na atualidade: um casamento de quase 30 anos desmoronando e um filho adolescente que acabou de ser aceito na faculdade de fotografia, com o qual Douglas não tem uma relação próxima.

Não bastasse o impacto do inesperado comunicado vindo da esposa, a família Petersen estava prestes a sair de férias durante um mês pela Europa – “O grand tour” –, passando por Paris, Amsterdã, Veneza, Barcelona, entre outros polos culturais. Para Albie, a viagem era uma obrigação planejada pelos pais. Para Connie, era um último momento com os três juntos. E, para Douglas, uma chance de salvar sua família.

Com uma narração honesta e fluida, o livro é dividido em 180 pequenos capítulos, alternando presente e passado – que se encaixam perfeitamente –, escritos no fluxo do pensamento e das memórias de Douglas. E é exatamente na narrativa memorialística, carregada do humor ácido característico do autor, que se dá a verdadeira viagem do romance. É com rara habilidade que Nicholls consegue usar esses recursos e manter a leitura agradável, com simplicidade e profundidade ao mesmo tempo. Ler Nós é como estar conversando com um amigo que te conta a história da sua vida, com o máximo de detalhes e contextualizações possível: “Instintivamente, sinto que minha vida poderia ser dividida em duas partes: antes de Connie e depois de Connie, e, antes de detalhar o que aconteceu naquele verão, seria útil que eu descrevesse como nos conhecemos. Afinal de contas, esta é uma história de amor. Certamente o amor faz parte dela”. Com isso, apesar de Douglas afirmar ser uma “história de amor”, pode-se dizer que é também uma comédia que, em alguns momentos, beira o trágico.

Grande parte dessa eficácia se deve à construção dos personagens, sobretudo os três principais. Douglas é um cientista, que oscila entre o seu lado racional e emocional. Como é ele quem narra, a estrutura do texto é mais um recurso para evidenciar a organização como uma característica forte do personagem, dando mais veracidade à história. Connie é uma pintora frustrada, amante da cultura, que sempre viveu em meio a artistas e é vista pelo marido como uma mulher boêmia, que já aproveitou bastante a vida e teve vários romances quando mais nova. Já Albie é um jovem muito próximo da mãe, tendo herdado dela o jeito rebelde de ser e a paixão pela arte. David Nicholls difere os personagens entre si com singular maestria, dando atenção às características particulares de cada um e narrando detalhes, muitas vezes técnicos, contudo sem o tom didático esperado, mas abordando temas científicos e artísticos de modo natural ao universo dos personagens. A consistência e a coerência são tamanhas que permitem grau considerável de identificação, ou ao menos de empatia, com cada um deles.

Devido ao seu enredo comum, foi com grande surpresa da crítica que o livro foi nomeado para o Man Booker Prize, um dos maiores prêmios literários anuais, que julga o melhor romance ou ficção de língua inglesa, escrito por autores vivos, cidadãos de algum país-membro da Commonwealth, da Irlanda ou do Zimbábue. Se a história desta vez não é tão inovadora quanto em Um dia, considerando que ambas contam com uma estranha e surpreendente forma de final feliz, a inovação se deu no modo de narrar, mais psicológica e amadurecida.

Talvez, para a próxima produção, Nicholls permita se libertar do peso de produzir mais um best-seller e arrisque aprofundar ainda mais nas angústias e nas experiências das relações, principalmente íntimas, entre os casais. Em Nós, essas experiências são ocultas com grande pudor, embora essa característica seja coerente com a timidez e introspecção do narrador: “Então, não entrarei em detalhes, exceto para dizer que funcionou muito bem para todos os envolvidos, com aquela sensação agradável de autossatisfação, como se tivéssemos descoberto que ainda éramos capazes de dar uma cambalhota. Em seguida, repousamos em meio a um emaranhado de braços e pernas”.

O livro, publicado originalmente em 2014, chegou ao Brasil em maio de 2015 e apresenta uma história casual e honesta para quem procura se divertir, se emocionar ou mesmo se encontrar. Sem a pretensão de ser uma obra reflexiva, Nós é uma excelente pedida, pois faz o leitor embarcar em um tour pela Europa, muito bem descrito, além de fazer uma viagem pelas crises e desafios do dia a dia, contados pelo olhar de um pai de família comum.

. Maria Thereza é estudante de letras na UFMG e faz pesquisa no campo da teoria da literatura sobre conto de fadas e literatura brasileira contemporânea.



TRECHO

“Então, não entrarei em detalhes, exceto para dizer que funcionou muito bem para todos os envolvidos, com aquela sensação agradável de autossatisfação, como se tivéssemos descoberto que ainda éramos capazes de dar uma cambalhota.”


NÓS

. De David Nicholls
. Tradução de Alexandre Raposo
. Editora Intrínseca
. 384 páginas, R$ 39,90

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