Fabuloso provocador

Corajoso e dono de inabalável bom humor, Flávio de Carvalho deixou o legado de amor à experimentação. Com seu expressionismo particular, ele fez história na pintura brasileira

por 27/06/2015 00:13
Henri Ballot/ O Cruzeiro/ Arquivo EM %u2013 23/4/57
Henri Ballot/ O Cruzeiro/ Arquivo EM %u2013 23/4/57 (foto: Henri Ballot/ O Cruzeiro/ Arquivo EM %u2013 23/4/57)
Carlos Perktold



É possível que, literalmente, todos os dias nasçam crianças com talento e potencial para serem artistas. Quase nunca ouvimos falar delas porque as dificuldades começam quando despertam seus interesses artísticos e a esmagadora maioria desses potenciais pintores, cantores, pianistas, poetas ou atores é castrada emocionalmente pelos próprios pais, que não compreendem o filho que têm ou não podem sustentar seu desejo, ou ainda por professores que os impedem de seguir com suas próprias pernas, obrigando-os a trilhar caminhos já percorridos por outros. Aí, talentos se perdem ou se cansam, deixando de cumprir o destino que os deuses lhes deram. Há ainda professores que os castram por inconsciente inveja de sua juventude, beleza e talento. Ouvimos falar desses ex-futuros artistas quando, já adultos e impossibilitados de recuperar o tempo perdido, lamentam não ter insistido no seu próprio desejo.

Mas há exceções. Uma delas se chama Flávio de Carvalho (1899-1973), “paulista” nascido na cidade de Amparo da Barra Mansa (RJ), onde sua família ficou apenas por um ano. Assim, nosso herói é fluminense por acaso, pois residiu sempre em São Paulo. Talvez algum pesquisador descubra em longínquo futuro uma glândula ainda incógnita, com a qual algumas pessoas nasçam e outras não. A glândula pode se chamar sorte. Com ela a vida fica mais fácil. Pois a sorte de Flávio de Carvalho começa com a riqueza dos pais, que, podendo financeiramente e compreendendo o talento do filho, o enviaram para estudar em Paris aos 12 anos. Sua sorte continua quando, passando férias na Inglaterra, estoura a Primeira Guerra Mundial e ele não consegue sair da ilha. Ali permanece e aos 19 anos inicia os estudos de engenharia na Universidade de Durham e o curso de belas-artes da Edward VII School. Volta ao Brasil em 1922, com 23 anos, com o título de engenheiro, sem tempo para participar da célebre Semana de Arte Moderna. Talento para isso não lhe faltava. Matemático, na engenharia fazia cálculos estruturais, mas sua paixão eram a arquitetura e a pintura.

Arquiteto, participou de vários concursos públicos com projetos para a construção de grandes obras: o Viaduto do Chá, na capital paulista; prédios da Universidade de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em BH; e conjuntos de casas modernistas.

Flávio de Carvalho era um homem à frente do seu tempo. Com a vantagem de, aparentemente, estar sempre de bom humor. Não ser contemporâneo de si mesmo é sempre trágico para o artista, que não é compreendido e nem aceito, sentindo sua vida azeda em vários sentidos, tornando-se biografado mal-humorado. Apesar de pouco compreendidas suas pinturas iniciais, em todas as fotos registradas em livros sobre sua vida ou ao lado de algum colega de paleta Flávio está sorrindo, sempre com cara de bon vivant, certo de que a vida lhe reservara o melhor do seu tempo, mesmo que incompreendido. Por isso mesmo, “aprontou” demais, produzindo, sempre que podia, o que ficou registrado em sua história de vida como escândalos.

PROCISSÃO

Alguns inimigos achavam que ele queria “aparecer”, ser notícia, o que não é verdade. Nem ele precisava disso. Era pura gozação de um sujeito de bem com a vida. O primeiro e mais notório escândalo ocorreu em 1931, quando Flávio realiza o que chamamos hoje de performance e ele intitulou Experiência nº 2. Sua “experiência” consistiu em desrespeitar uma procissão de Corpus Christi. O que fez era algo quase infantil visto com os olhos de hoje. Na década de 1930, a Igreja Católica tinha prestígio infinito se comparado aos do dias de hoje. Durante a procissão, ele usou um boné verde e andou na contramão dos fiéis, despertando a ira pelo desrespeitoso desafio do boné na cabeça e pela forma agressiva como perambulou entre o público. Ameaçado de linchamento, Flávio foi preso pela polícia paulistana.

Para contrariar e chocar ainda mais, no mesmo ano ele publicou um livro sobre o acontecimento. Sua trajetória de enfant terrible continua quando cria o Teatro Experiência e o espetáculo Bailado do deus morto, fechado pela polícia. Era uma tentativa de expor nova forma de artes cênicas – do cenário à dramatização, passando pela dicção, mímica e até pela observação de sentimentos e emoção despertados no público pela inovadora experiência. Também não deu certo.

Mais tarde, em 12 de julho de 1934, Flávio expõe sua bela pintura, mas a mostra novamente é fechada pela polícia, que apreende cinco quadros. Seu expressionismo, com paleta cheia de cores e alguns nus, era demais para o público paulistano. Se ele fosse menos corajoso e mais atento, teria aprendido com os fracassos de Lasar Segall e Anita Malfatti em anos anteriores. Saberia que o modernismo não havia sido aceito no país, longe do que ele vira e aprendera do cubismo, surrealismo, expressionismo e do futurismo na Europa. Antonio Bento nos assegura em texto e como testemunha pessoal: o modernismo só seria aceito no Rio de Janeiro a partir de 1950.

PELADO

Por ordem judicial, Flávio conseguiu reabrir aquela exposição alguns dias depois, mas o estrago já estava feito. Não há registro de que tenha vendido algum quadro. Pessoalmente, cultivava hábitos pouco ortodoxos. Em sua casa havia uma piscina e, uma vez por semana, ele erguia a bandeira no alto do telhado. Os amigos sabiam que ele passaria o dia nadando pelado – assim seria recebido quem viesse visitá-lo. Aliás, o artista nadou nu em público em uma fonte na Praça Júlio Mesquita, em 1939, outra de suas gozações. Em 1956, tentou convencer os brasileiros de que o Brasil é país tropical e que deveríamos usar roupas apropriadas para o nosso clima. Criou uma saia masculina e uma camisa solta no corpo, chamou o conjunto de new look, desfilou com ele pelas ruas de São Paulo e foi notícia no país inteiro. Mas sua ideia – novamente – não vingou.

O nosso fabuloso provocador era, sobretudo, um brilhante artista universal. Suas pinturas, aquarelas e desenhos traziam aplicação das cores complementares de que ele mais gostava: verde com vermelho, azul com laranja. Assim, Flávio produziu centenas de obras célebres, retratos expressionistas de seus amigos, vários autorretratos e muitas paisagens, que hoje se espalham por museus de São Paulo e Rio de Janeiro, além de importantes coleções particulares. Mas essas não eram as únicas cores de sua preferência. Como todo pintor brilhante, suas obras são reconhecíveis a distância pelo estilo, pinceladas grandes e seguras e pelas personalíssimas cores criadas por ele. Toda essa carreira de pintor é coerente e carregada de trabalhos emblemáticos desde a década de 1930, mas é nas pinturas dos anos 1940/50 que seu brilhantismo jorra – seja sobre camadas de tinta nas telas seja em desenhos a carvão, deixando rastros indeléveis do quanto uma criança talentosa e de sorte pode se tornar adulto imortal, exemplo para todos neste Brasil.



JORGE AMADO

O expressionismo das pinturas de Flávio de Carvalho, em especial as figuras humanas, transmite o sentimento de que, nos anos 1950, ele havia sido finalmente aceito e compreendido. Esse humanismo pode ser visto no belo retrato de Jorge Amado, de 1945, que será leiloado em 2 de julho, no Rio de Janeiro, com lance inicial de R$ 2 milhões. Se vendido, será um dos retratos a óleo mais caros do Brasil – a obra mais valorizada de Flávio de Carvalho. Perderá essa posição apenas para certos retratos de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Candido Portinari. Nele, Jorge Amado, aos 33 anos, já era um nome importante da nossa literatura. Seguro de seu traço, o pintor tinha então 46 anos e estava no esplendor de seu expressionismo.

Seu brilho não era apenas financeiro e nem somente nos óleos; dava-se também nos desenhos a nanquim, expondo traços inigualáveis, bem equilibrados por outros que faziam a composição nos atrair pela segurança de quem conhece o ofício. Suas aquarelas não eram menos importantes e nem menores do ponto de vista artístico. Aliás, como um midas moderno, tudo que traçava ou tocava virava arte, de seus projetos arquitetônicos à tentativa de criar uma roupa tropical.

Flávio de Carvalho foi um artista de muitos ofícios durante seus 74 anos de vida. Ele só não foi alfaiate ou costureiro, mas, por certo, sabia lidar com as linhas.


. Psicanalista, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA)

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