Fernando Brant

por 20/06/2015 00:13
Sidney Lopes/EM - 18/1/1985
Sidney Lopes/EM - 18/1/1985 (foto: Sidney Lopes/EM - 18/1/1985)



Tancredo

Gosto de ler dicionários, e em especial um, o etimológico de nomes, de Antenor Nascentes. Ele me ajuda muito. Não sou muito chegado a crendices horoscópicas e afins, mas isso nada tem a ver com minhas observações. As palavras vieram depois das coisas, um modo eficaz que os humanos inventaram de designar o que conheciam e se comunicar, os vocábulos significando, na origem, exatamente o que eram.

Por exemplo. Itaorna, do tupi-guarani, quer dizer pedra que se esfarela, e o governo dos tempos militares ignorou esse saber e construiu, em Angra dos Reis, nossas usinas nucleares. E as pedras são realmente podres.

Assim, os nomes das pessoas têm significado, o que não quer dizer que a pessoa que resultar da denominação vai corresponder à previsão dos pais.

Não parece ser o caso do meu personagem de hoje que, vivo, estaria fazendo 100 anos. O sentido de seu nome, Tancredo, é “conselheiro com reflexão”.

E há uma possibilidade de ser “conselheiro agradecido”. Pensa, aconselha e ainda fica agradecido. Combina com o que ele foi. Nestes tempos em que política, em todo o mundo, passa por um descrédito justificável, tais os absurdos cometidos contra a democracia pelos que deveriam representá-la e defendê-la, sinto-me bem em me lembrar de um mineiro e brasileiro que foi exemplo de vida e atitudes diferentes do que estamos acostumados nos dias de hoje.

Adolescente, ouvi pelo rádio e li nos jornais as notícias do golpe militar, muito apoiado por gente que andava pela mesma cidade que eu. Chorei, menino, com o golpe que, nem imaginava, bloquearia nossas vidas por mais de 20 anos. Passei minha juventude e muito tempo de minha adultância em meio a uma ditadura. Vivi, estudei, virei compositor, marido e pai naquele ambiente opressivo. Consegui construir uma existência pessoal digna e boa, mas o ar das ruas era irrespirável.

Vi, vimos, em 1982, depois de um longo e sofrido caminhar, que era possível chegar à democracia. A candidatura de Tancredo Neves ao Palácio da Liberdade, naquele ano, era a porta que se abria para o fim do autoritarismo. O governo de Minas, estava escrito com todas as letras para nós poetas e sonhadores, era o passo certo para a rampa do Planalto Central e a volta dos brasileiros livres ao poder. Abracei, abraçamos, aquela causa com todas as nossas forças.

E estávamos certos.

Cantamos em praça pública, e Belo Horizonte nunca vira nada parecido, para uma multidão de mineiros ávidos de música, beleza e liberdade.

“Mineiros: o primeiro nome de Minas é liberdade”, ouço até hoje. Por ter sofrido o pior e participado discretamente da construção da solução, abro meus braços e meu pensamento para Tancredo Neves, conselheiro que pensava e que ajudou os brasileiros a acreditarem que a democracia era possível.

Continuo acreditando, mas prestando muita atenção no que se passa.





Os mascarados

Máscara é um disfarce. Um jeito de esconder, velar a verdade, desinformar.

Na infância, encantava-me com o Zorro e o Batman, heróis das histórias em quadrinhos e dos filmes em série do cinema. Cobrindo os rostos, as máscaras ocultavam os mocinhos, que, sem usá-las, seriam descobertos em seu dia a dia e impedidos de praticar o bem, fazer justiça contra os malfeitores, os que oprimiam o povo.

Nas tragédias e comédias gregas, as máscaras eram indispensáveis. No latim, persona, personagem, figura, papel. Vem daí o título do belíssimo filme de Ingmar Bergman, aqueles rostos de pessoas sofridas presentes até hoje em minha memória.

Existem aqueles que chamamos mascarados, os convencidos, vaidosos, presunçosos, os que se julgam ser melhores do que são, os que pensam ter o rei na barriga. Mas a boa máscara é a dos carnavais, da folia. Houve o tempo dos confetes, serpentinas e lança-perfume. Aquela moça com a face escondida gritando no meio do salão arrepiava os corações adolescentes. Nas rua havia toda espécie de fantasia e o grupo de gatinhas podia ser só de mulheres ou trazer alguns machos escondidos.

Máscara negra, de Zé Keti e Pereira Matos, é o símbolo eterno em canção popular do mistério que havia na imaginação de quem brincava no carnaval e se deparava com o segredo do rosto feminino que só revelava os olhos. Isso vale, certamente, para as moças que sonhavam príncipes por detrás do pequeno pano que encobria a identidade do objeto de desejo e admiração.

Nem é carnaval e as máscaras e os mascarados voltaram às nossas cidades. Nada que lembre os heróis dos quadrinhos ou do cinema. Muito menos o teatro grego.

Muito longe dos bons tempos da alegria de Momo. Não vieram festejar, querem destruir. Dizem que são anarquistas e anticapitalistas. Não são. Fazem o mesmo que grupos nazistas praticaram há poucos anos na Alemanha e outros países europeus. Não passam de fascistas, que não respeitam o direito dos cidadãos e a democracia. Abusam da omissão dos que deveriam defender o direito de ir e vir das pessoas. Nenhuma reivindicação inteligível, só caos e violência.

Pessoas iguais a eles, seus irmãos em ódio, acabaram com o “Ocupem Wall Street”.

Os brasileiros saíram às ruas de suas cidades, em junho, para dar um basta à corrupção, à incompetência e dizer que o povo não está representado pela maioria dos que ocupam os cargos públicos. Todo mundo que viu guarda as imagens belíssimas dos cidadãos assumindo o que lhes pertence. Exigindo melhor educação, saúde, transporte, segurança e respeito. Os do poder não entenderam nada. Aí vieram os mascarados fascistas para acabar com a festa das multidões.

Quem estará por trás disso?


Jango

Era semana santa. Estava em Diamantina, depois de alguns anos de ausência. As mesmas pedras capistranas em que eu corria atrás de bola até meus 9 anos estavam lá. As mesmas igrejas, a mesma paisagem, o mesmo povo simples.

Diferente era, bares abertos na sexta-feira, o bispo dom Sigaud abençoando (será?) os frequentadores dos botequins. Eu tinha nas mãos uma inofensiva Coca-Cola, mas também fui atingido pelos gestos episcopais.

Meu irmão, estudante com índole de líder, agitava o seminário religioso com discurso inflamado contra o golpe que se anunciava.

Eu acompanhava os fatos nacionais e tinha uma impressão positiva da ação e das falas do gaúcho João Goulart. Sabia das prometidas reformas de base, que dividiam o país. Era um assunto essencial nos intervalos das aulas do Colégio Estadual. Lia os jornais de casa e assistira pela tevê ao comício do dia 13 de março, no Rio de Janeiro, quando uma multidão aplaudiu os oradores, que defendiam as mudanças a serem feitas na estrutura do Brasil.

Já simpatizara, antes, com o jingle cantado por Jorge Goulart na eleição de 1960. “Na hora de votar eu vou jangar, eu vou jangar, é o Jango, é o Jango, é o Jango Goulart.” Quando houve o plebiscito para se restabelecer o presidencialismo eu também me entusiasmei, mesmo não tendo ainda o direito de votar (sem saber, naquele tempo, que só participaria de eleições nacionais quase 30 anos mais tarde). Torci e cantei: “Eu vou fazer um xis no quadrinho ao lado da palavra não, parlamentarismo não, o povo tem razão, eu vou fazer um não”. Em outras circunstâncias, outra realidade e mais conhecimento, eu iria votar no parlamentarismo já em tempos de democracia reconquistada.

Agora que o restos mortais de João Goulart chegam a Brasília, 37 anos após sua suspeita morte no exílio, e que seu papel em nossa história é oficialmente reconhecido, eu me lembro de um texto que escrevi para o filme Jango, de meu amigo Sílvio Tendler.

Sinto que vale a pena recordar.

“Os acontecimentos daqueles dias ainda estão claros na memória: fechado no escuro do quarto querendo fugir do mundo que me chegava pelo rádio, eu, pouco mais que um menino, chorava como se fosse morte, a viagem-fuga do presidente Jango. Os anos passados, a maturidade e a visão diária da injustiça e do ódio, da opressão e do medo vieram confirmar meus sentimentos. Em nome da verdade e da história eu, adulto, reafirmo o menino: as lágrimas derramadas em 1964 continuam justas.”

Eles não entenderam nada

Um rio ou um oceano de povo passou na vida do país e eles não perceberam o que se passou, o recado dado, o que está se passando.

Continuaram a voar desavergonhadamente nos aviões da FAB, senhores do “pudê”, capazes de tudo para manter o povo nordestino na miséria e eles no bem- bom. Votaram no mês de junho, como se tivessem ouvido as vozes das ruas, os maiores absurdos legislativos de que se tem notícia.

Se alguém passasse, naqueles dias, pelas galerias do Congresso e gritasse “viva a ditadura”, eles a teriam decretado. Pobre gente que age por interesse privado e vota como manada. Como se explica, por exemplo, um partido que se diz liberal aprovar a intervenção estatal em direito privado? Até isso se viu na casa que deveria representar os vários segmentos dos brasileiros.

Na noite de uma segunda-feira moderadamente fria, assisto, no programa Roda viva, aos atletas Ana Moser, do vôlei, e Raí, do futebol. Falam em nome de uma centena de atletas admiráveis que assinaram um manifesto em favor de uma política pública para o esporte. Dizem que o esporte, espalhado pelas escolas, bairros e cidades do país, pode salvar os jovens e também o Brasil. Eles já conquistaram no campo esportivo medalhas e campeonatos que nos orgulham. Poderiam descansar e cuidar de sua vida pessoal, mas, como disse Ana Moser, citando um outro atleta aposentado que não ouvi bem qual era: “Quem veste a camisa brasileira não a desveste jamais”.

Fico sabendo, então, que eles tentam uma audiência com a Presidência da República há sete anos. Sem sucesso. Não querem nada para eles, e sim oferecer um plano que proporcione o verdadeiro legado para o Brasil, no momento em que se prepara a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Não propõem nada que tenha a ver com os bilionários interesses que movem o esporte dos grandes eventos. Sete anos pastoreiam para alcançar seus objetivos justos. Precisarão servir mais sete?

Parece que sim. Pois imaginem que marcaram audiência com o ministro dos Esportes. E de quê cuida esse ministério? Marcada a audiência, uma comitiva foi a Brasília para ofertar sua ideia generosa. Não foram recebidos pelo ministro, que, em cima da hora, anunciou que tinha outro compromisso. Vergonha e desrespeito, ministério inútil e incompetente. Na certa, ele foi cuidar da política menor, ou conversar com o Blatter, os grandes patrocinadores ou os novos Havelanges.

Realmente, eles não nos representam. Enquanto se esbaldam com o dinheiro que deles não é, enquanto cinicamente continuam a se comportar imoralmente, uma senhora passa horas na fila de renovação de carteira de trânsito em Brasília, cumprindo um dever básico. A cidadã, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, é exemplo e um tapa na cara dessas pessoas. O Brasil tem jeito.

A revolução sardinista

Nessa eu embarco com força, vontade e apetite. Não confundir com o que ocorreu na Nicarágua há alguns anos, tempos quentes da guerra fria. Estou me referindo à sardinha, o peixe mais democrático e barato que existe. E o melhor, na minha opinião. Lembro-me das sextas-feiras de minha infância, dia de feira livre no meio da rua perto de casa. Eu era fascinado também com as mexericas, as ameixas, maçãzinhas, peras nacionais e marmelo. Vem desse tempo, talvez, meu namoro com as bananas, principalmente a prata.

Mas o dia era delas. Na hora do almoço, limpas, as sardinhas eram cobertas com farinha ou fubá e fritas aos montes. Inesquecíveis almoços sardinianos, que repito até os dias atuais da maturidade. Gosto muito de peixe, seja de mar ou de rio, mas igual a elas não há.

Hoje, quando me delicio com os quilos que compro, chamo amigos e abasteço a geladeira de cervejas. O líquido faz a vez do arroz, providencio uma salada de verduras cruas e me entrego a elas por todo o começo da tarde. Amigos, sardinha e cerveja são uma mistura que só traz felicidade.

Lembrei-me disso ao ler sobre um movimento mundial de valorização do pequeno peixe miraculoso. Campeão para a saúde e o paladar. Há uma onda de prestígio desse pescado, que parece não interessar ao nosso Ministério, veja, só, da Pesca. Não custaria nada, e seria bom para os brasileiros, que se fizessem campanhas de incentivo ao consumo de sardinhas. Alimento que existe por muitos mares, em grande quantidade e que, pelo baixo preço, todos podem comer. Sardinha: fome zero e sabor mil.

E a revolução espalha o valor e a qualidade dessa joia dos mares, que pode ser frita, cozida ou assada. E estão aprimorando, oh! maravilha, a maneira de as conservar e embalar. Nos momentos de aperto, banana e sardinha em lata são imbatíveis.

De falar nelas, chega-me o cheiro maravilhoso que se sente ao se caminhar pelas ruas da Alfama, em Lisboa. Ou por todos os cantos da cidade se é dia de Santo Antônio. Ou na Praça da Sardinha, no Centro do Rio de Janeiro.
Pescador de lambaris, outro acompanhante inseparável das cervejas e dos vinhos, me filio com orgulho e ardor a essa revolução meritória que, aos poucos, vai se espalhando pelo mundo e conquistando os sentidos. Quem for da sardinha que me acompanhe. Sardinheiros do mundo, uni-vos.

Eu, que não sou maria vai com as outras, procuro afinar meu gosto e meu pensamento, no mínimo para justificar o esforço de meus pais em me educar. Por isso tenho pouca disposição de seguir a boiada, aceitar a impostura, a falsidade ou seguir o rumo imposto pela publicidade, o marketing e a cultura de massa. Mas quando se trata de sardinha, eu sou é do popular.

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